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2016, o ano do samba

Há um dito costumeiro segundo o qual, no Brasil – ao menos nas altas rodas do poder -, tudo acaba em samba. Como a pizza herdada dos italianos, outra que, de acordo com a sabedoria das ruas, tem o hábito de encerrar «festa » por aqui, nosso ritmo mais popular, pelo senso comum, acabou associado, nessas horas, ao lado mais negativo do nosso famoso «jeitinho»: o desejo de levar vantagem e a crença na impunidade.

A pecha, contudo, é extremamente injusta para um estilo musical nascido há cem anos que, longe de sustentar interesses daqueles alheios às reais necessidades da população, é a expressão direta do povo. Sim, na sua malícia e malandragem – no bom sentido dos termos -, mas também, e sobretudo, no seu trabalho árduo, na sua luta cotidiana, na sua esperança em dias melhores.

O primeiro samba a conquistar o público e alçar o gênero às paradas de sucesso foi a canção «Pelo telefone», gravada em novembro de 1916 e assinada por Donga e Mauro de Almeida. Mas sua origem remonta, na verdade, aos antigos batuques trazidos pelos africanos que vieram como escravos para o Brasil, os quais estavam associados, principalmente, a elementos ritualísticos através da música, da dança e da percussão. É um ritmo, portanto, nascido da combinação do suor provocado pela terra, das lágrimas derramadas pela dor e do canto motivado pela crença de que a transformação pode ser possível.

Assim, não é por acaso que a Contee escolheu homenagear o centenário oficial do samba enquanto prossegue a celebração de seu próprio quarto de século de atividades, completado no fim de 2015. Estamos duplamente em festa – um dos significados originais, aliás, da palavra samba – porque tanto a Contee quanto esta que é a música mais genuinamente brasileira são comprometidas, por vocação e princípio, com os trabalhadores.

Há um pouco de tudo no samba, como um espectro de uma sociedade diversa e multicultural. Há irreverência («Acertei no milhar!/ Ganhei 500 contos/ Não vou mais trabalhar»), há lamento («E do meu grande amor/ Sempre eu me despedi sambando/ Mas da batucada agora me despeço chorando»), há política («Meu irmão se liga/ No que eu vou lhe dizer/ Hoje ele pede seu voto/ Amanhã manda a polícia lhe bater»). Esse teor político, inclusive, continua a fazer de algumas letras reflexões profundamente atuais, como também transforma o ritmo, para além de manifestação cultural, em instrumento social poderoso, capaz de denúncias contundentes, como, por exemplo, durante a ditadura militar («Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia»).

Por vezes machista («Eu quero uma mulher, que saiba lavar e cozinhar/ Que de manhã cedo, me acorde na hora de trabalhar» ou «Na subida do morro me contaram/ Que você bateu na minha nega/ Isso não é direito/ Bater numa mulher que não é sua»), como retrato de uma sociedade na qual as mulheres, ainda hoje, são vítimas do preconceito e da violência, e embora tenha sido identificado, por muitos anos, como um reduto masculino, o samba, por outro lado, também abriu espaço para a expressão e a resistência feminina. Isso comprovam, ao longo da história, nomes como Clementina de Jesus, Dona Ivonne Lara, Clara Nunes, Glória Bomfim, Mariene de Castro, Beth Carvalho, Leci Brandão e tantas outras. E esse é um aspecto que precisa ser levado em conta num momento em que as mulheres brasileiras se unem contra ameaças a direitos fundamentais conquistados ao longo dos anos e que se encontram em xeque pela pressão do conservadorismo fundamentalista.

É por tudo isso que a Contee deseja que tudo acabe em samba, sim, mas não com o tom pejorativo pelo qual a expressão ficou conhecida. Que tudo acabe no samba da luta dos trabalhadores e trabalhadoras, no samba da expressão sócio-cultural e política legítima de um povo, no samba da crença de que a unidade leva a conquistas.

 

Madalena Guasco Peixoto
Coordenadora-geral da Contee