A Constituição da República Federativa do Brasil (CR), em seu Art. 5°, que estabelece os direitos fundamentais individuais, consagra o princípio da isonomia, que – segundo a já secular convenção doutrinária e jurisprudencial – consiste no tratamento de forma igual, para os iguais, na medida em que se igualam, e de forma desigual, na medida de sua desigualdade.
No mesmo Art., inciso I, a CR preconiza que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos por ela estabelecidos.
Pois bem. Esta almejada e festejada igualdade não raras vezes é invocada com sentido diametralmente oposto ao seu postulado e ao seu alcance, notadamente, por empresas inescrupulosas, que querem intensificar a exploração do trabalho da mulher, e, para tanto, arguem a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que rigorosamente respeitam o princípio da isonomia.
O Art. 384 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – com redação anterior à CR -, que se encontra no Capítulo III, que regulamenta a proteção do trabalho da mulher, estipula, de maneira mandatória: “Em caso de prorrogação do horário normal, será obrigatório um descanso de quinze minutos no mínimo, antes do início do período extraordinário de trabalho”.
Este Art., exatamente por respeitar as desigualdades físicas entre homens e mulheres, desde o advento da CR, por objetivos espúrios, vem sendo objeto de polêmica e de constantes questionamentos por parte de algumas empresas, que o acusam de ser inconstitucional. Frise-se que tal polêmica deve-se, exclusivamente, ao fato de o intervalo retrotranscrito ser remunerado.
Como corolário dessa repugnante discussão, a empresa Angeloni e Cia Ltda, de Santa Catarina, conseguiu fazer chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF), o Recurso Extraordinário (RE) N. 658.312, que argui a inconstitucionalidade do Art. sob destaque, que teve reconhecida a sua repercussão geral, ou seja, que interessa à sociedade e não apenas às partes nele envolvidas.
A recorrente, no citado RE, como já dito, buscava a declaração de inconstitucionalidade do Art. sob realce e, com ela, a sua desobrigação de conceder e de remunerar o intervalo de quinze minutos, nos casos de prorrogação de jornada.
Vale salientar que a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) e a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) ingressaram no processo, como amicus curiae (amigos da corte), para defender a tese da recorrente, ou seja, para reforçar o coro dos que querem a declaração de inconstitucionalidade do Art. em questão.
O referido RE foi julgado pelo STF, no dia 27 de novembro último, tendo como relator o ministro Dias Tofóli, que em lapidar voto, acompanhado pela maioria dos ministros presentes à sessão, reconheceu a constitucionalidade do Art. sob ataque, mantendo-o incólume, o que significa que todas as empresas , sem exceção, em caso de prorrogação de jornada, são obrigadas a conceder às mulheres o intervalo remunerado de quinze minutos, nos permissivos termos de seu comando.
Salienta-se, por oportuno, que este entendimento há muito acha-se consagrado no Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Como o voto vencedor do ministro relator, é de notável alcance social, com sólidos fundamentos essenciais à construção da cidadania plena, vale a pena transcrever, aqui, as suas bases:
“Esse dispositivo ingressou neste país na vida jurídica das mulheres com o Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, o qual foi sancionado pelo então presidente Getúlio Vargas durante o período do Estado Novo, no qual não só se unificou toda a legislação trabalhista, como também se inseriram no mundo jurídico novos direitos dos trabalhadores. Temos de relembrar que a cláusula geral da igualdade foi expressa em todas as Constituições brasileiras. O art. 179, inciso XIII, da Constituição de 1824 previa que “[a] lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. A Constituição de 1891, com a redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926, preocupava-se com a igualdade formal entre as pessoas, a fim de impedir que se fizessem distinções em função das posses ou de títulos nobiliárquicos ou de nascimento, estabelecendo o seguinte: “[t]odos são iguaes perante a lei. A República não admitte privilegios de nascimento, desconhece foros de nobreza, e extingue as ordens honorificas existentes e todas as suas prerogativas e regalias, bem como os titulos nobiliarchicos e de conselho” (art. 72, § 2º). Somente com a Constituição brasileira de 1934 é que, pela primeira vez, ressaltou-se o tratamento igualitário entre o homem e a mulher quando, de forma exemplificativa, retratou a Constituição a obrigação da lei de garantir esse tratamento isonômico: “[t]odos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias políticas” (art. 113, ‘1’). Esse texto foi retomado, quanto a seus aspectos elucidativo e ilustrativo, incluindo o tratamento isonômico quanto ao gênero, no art. 153, § 1º, da Emenda Constitucional nº 1 de 1969. Quando foi sancionada a Consolidação das Leis Trabalhistas, vigorava a Constituição de 1937, a qual se limitou, como na Constituição de 1946, a garantir a cláusula geral de igualdade, expressa na fórmula “todos são iguais perante a lei”. Nessa última Carta, o art. 157, inciso II, proibia, expressamente, qualquer tratamento diferenciado nos salários para um mesmo trabalho por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil.
Nem a inserção de cláusula geral de igualdade em todas as nossas Constituições nem a inserção de cláusula específica de igualdade de gênero na Carta de 1934 impediram, como é de todos sabido, a plena igualdade entre os sexos no mundo dos fatos.
Não foi por outro motivo que a Constituição Federal de 1988, sobre o tema, explicitou, em três mandamentos, a necessária garantia da igualdade, sob seus diversos aspectos. Assim: i) fixou a cláusula geral de igualdade, prescrevendo, em seu art. 5º, caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (…)”; ii) estabeleceu uma cláusula específica de igualdade de gênero, declarando que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” (art. 5º, inciso I, CF); e iii) ao mesmo tempo, deixou excepcionada a possibilidade de tratamento diferenciado, por opção do constituinte, na parte final desse dispositivo, salientando que isso se dará “nos termos [da] Constituição”.
As situações expressas de tratamento desigual, sobre as quais poderia ocorrer alguma dúvida, foram dispostas formalmente na própria Constituição, como podemos verificar, por exemplo, nos arts. 7º, inciso XX, e 40, § 1º, inciso III, letras a e b. Pela leitura esses dispositivos podemos concluir que a Constituição Federal veio a se utilizar de alguns critérios para esse tratamento diferenciado: i) em primeiro lugar, levou em consideração a histórica exclusão da mulher do mercado regular de trabalho e impôs ao Estado a obrigação de implantar políticas públicas, administrativas ou meramente legislativas de natureza protetora no âmbito do direito do trabalho (PITANGUY, Jacqueline & BARSTED, Leila L. (orgs.). O Progresso das Mulheres no Brasil. Brasília: UNIFEM, Fundação Ford e CEPIA, 2006); ii) considerou existir um componente orgânico, biológico, a justificar o tratamento diferenciado, inclusive pela menor resistência física da mulher; e iii) considerou haver, também, um componente social, pelo fato de ser comum o acúmulo de atividades pela mulher no lar e no ambiente de trabalho – o que, de fato, é uma realidade e, portanto, deve ser levado em consideração na interpretação da norma, como propõe a metódica concretista de Friedrich Müller (cf. Métodos de trabalho do Direito Constitucional. Trad. Peter Naumann: Rio de Janeiro, Renovar, 2005 e O novo paradigma do direito: introdução à teoria e à metódica estruturantes do direito. Trad. Dimitri Dimoulis et. al.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008). Não vislumbro ser a espécie um enunciado normativo que retrate mecanismo de compensação histórica por discriminações socioculturais fundado na doutrina do “impacto desproporcional”, tal qual desenvolvida pelo sistema jurídico norte-americano. O art. 384 da CLT levou em consideração os outros dois critérios acima elencados. Esses parâmetros constitucionais são legitimadores de um tratamento diferenciado, desde que a norma instituidora amplie direitos fundamentais das mulheres e atenda ao princípio da proporcionalidade na compensação das diferenças. Essa é a tese em jogo e, ao se analisar o teor da regra atacada, podemos inferir que a norma trata de aspectos de evidente desigualdade de forma proporcional, garantindo o período de descanso de, no mínimo, quinze (15) minutos antes do início do período extraordinário de trabalho, à mulher trabalhadora.
É fato que houve, com o tempo, a supressão de alguns dispositivos protetores da mulher que cuidavam do trabalho noturno e da jornada de trabalho da empregada, previstos nos arts. 374 a 376, 378 a 380 e 387 da Consolidação das Leis do Trabalho. Ocorre que, quando da revogação desses dispositivos pela Lei nº 7.855, de 24/10/89, o legislador entendeu que deveria manter a regra do art. 384 da CLT, a fim de lhe garantir uma diferenciada proteção, dada a identidade biossocial peculiar da mulher e da sua potencial condição de mãe, gestante ou administradora do lar.
Aliás, não há como negar que há diferenças quanto à capacidade física das mulheres em relação aos homens – inclusive com levantamentos científicos (vide BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. Ltr, 2008, p. 1080; COSTA, Jurandir Freire. Homens e Mulheres. In: Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.235-261; SZAPIRO, Ana Maria. Diferença sexual, igualdade de gênero: ainda um debate contemporâneo. In: D’Ávila, Maria Inácia, PEDRO, Rosa (Orgs.). Tecendo o Desenvolvimento: saberes, gênero, ecologia social. Rio de Janeiro: Mauad: Bapera, 2003. p.83-94; BENNETT, James T. The Politics of American Feminism: Gender Conflict in Contemporary Society. University Press of America, 2007). Cuida-se de argumento real e que deve ser considerado. Tanto é que o art. 390 da CLT protege a trabalhadora, impedindo o empregador de contratar mulher em “serviço que demande o emprego de força muscular superior a 20 (vinte) quilos para o trabalho continuo, ou 25 (vinte e cinco) quilos para o trabalho ocasional”.
Confira-se, sobre o tema, o escólio do saudoso professor Celso Ribeiro Bastos: “homens e mulheres não são, em diversos sentidos, iguais, sem que com isso se queira afirmar a primazia de um sobre o outro. O que cumpre notar é que, por serem diferentes, em alguns momentos haverão forçosamente de possuir direitos adequados a estas desigualdades” (BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 18).
O Tribunal Superior do Trabalho vem reconhecendo a vigência do dispositivo ora impugnado. Destaco trecho do voto do eminente Ministro Ives Gandra Martins Filho, Relator no julgamento do RR nº 121100-07.2010.5.13.0026, da Sétima Turma, em 7/3/12, que acentuou a necessidade da manutenção da discriminação positiva em benefício da mulher:
“Ressalte-se que o maior desgaste natural da mulher trabalhadora, em comparação com o homem, dada a diferente compleição física, não foi desconsiderado pelo Constituinte de 1988, que garantiu, por exemplo, diferentes condições para a obtenção da aposentadoria para homens e mulheres, bem como previu períodos distintos de licenças maternidade e paternidade (CF, art. 7º, XVIII e XIX; art. 201, § 7º, I e II; ADCT, art. 10, § 1º).
Assim é que a própria Constituição da República, tendo em mira o estabelecimento de uma igualdade material, em detrimento de uma igualdade meramente formal, estabeleceu algumas diferenças entre os sexos. Logo, com o objetivo precisamente de concretizar o princípio albergado no inciso I do art. 5º da CF, devem-se tratar desigualmente homens e mulheres, na medida das suas desigualdades.
É justamente dentro desse conceito de igualdade material que se insere a ideia de concessão de vantagens específicas às trabalhadoras do sexo feminino, em função de suas circunstâncias próprias, como é o caso do intervalo de 15 minutos antes de iniciar uma jornada extraordinária de que trata o art. 384 da CLT.
Deve ser observado, por outro lado, que o Pleno desta Corte Superior, apreciando incidente de inconstitucionalidade (cfr. TST-IIN-RR-1.540/2005-046-12-00.5), concluiu que o art. 38 da CLT foi recepcionado pela Constituição de 1988, entendendo que a razão de ser do referido dispositivo legal é a proteção da trabalhadora mulher, fisicamente mais frágil que o homem e submetida a um maior desgaste natural em face da sua dupla jornada de trabalho, o que justifica o tratamento diferenciado da mulher em termos de jornada de trabalho e período de descanso” (DEJT, 9/3/12).
…
Não parece existir fundamento sociológico ou mesmo comprovação por dados estatísticos a amparar a tese de que o dispositivo em questão dificultaria ainda mais a inserção da mulher no mercado de trabalho. Não há notícia da existência de levantamento técnico ou científico a demonstrar que o empregador prefira contratar homens, em vez de mulheres, em virtude da obrigação em comento.
Por sua vez, diante desses argumentos jurídicos, não há espaço para uma interpretação que amplie, sob a tese genérica da isonomia, a concessão da mesma proteção ao trabalhador do sexo masculino, pois além de os declinados raciocínios lógico e jurídico impedirem que se aplique a norma ao trabalhador homem, sob o prisma teleológico da norma, não haveria sentido em se resguardar a discriminação positiva diante das condicionantes constitucionais mencionadas. Adotar a tese ampliativa acabaria por mitigar a conquista obtida pelas mulheres.
Torno a insistir: o discrímen, na espécie, não viola a universalidade dos direitos do homem, na medida em que o legislador vislumbrou a necessidade de maior proteção a um grupo de trabalhadores, de forma justificada e proporcional.
Inexiste, outrossim, violação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – adotada pela Resolução nº 34/180 da Assembleia Geral das Nações Unidades em 18/12/1979 e ratificada pelo Brasil em 1º/2/1984, por meio do Decreto Legislativo nº 93, de 14 de novembro de 1983 -, na medida em que seu art. 1º bem delineou o sentido da expressão “discriminação”, a saber:
“Artigo 1º – Para fins da presente Convenção, a expressão ‘discriminação contra a mulher’ significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”.
A normativa internacional, além de vigorar em nosso país, foi recepcionada pela nossa Carta Constitucional de 1988, que, inclusive, proclamou outros direitos específicos das mulheres: i) nas relações familiares, ao coibir a violência doméstica (art. 226, §§ 5º e 8º); ii) quanto ao mercado de trabalho, ao proibir a discriminação (art. 7º, inciso XXX) e, principalmente, iii) ainda quanto ao mercado de trabalho, ao garantir uma proteção especial à mulher mediante incentivos específicos, conforme previsão do art. 7º, XX, regulamentado pela Lei nº 9.799, de 26 de maio de 1999, que inseriu na Consolidação das Leis do Trabalho regras sobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho.
O fato é que tanto as disposições constitucionais, convencionais como as infraconstitucionais não impedem que ocorram tratamentos diferenciados, desde que existentes elementos legítimos para o discrímen e que as garantias sejam proporcionais às diferenças existentes entre os gêneros, ou ainda, definidas por algumas conjunturas sociais. Sobre o tema, vide a sóbria e exata colocação de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“[P]or via do princípio da igualdade, o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas. Para atingir este bem, este valor absorvido pelo Direito, o sistema normativo concebeu fórmula hábil que interdita, o quanto possível, tais resultados, posto que, exigindo igualdade, assegura que os preceitos genéricos, os abstratos e atos concretos colham a todos sem especificações arbitrárias, assim proveitosas que detrimentosas para os atingidos” (O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo, Malheiros, 1999, p. 18).
Reitero: não houve tratamento arbitrário ou em detrimento do homem. O que o legislador verificou foi a necessidade de, diante das diferenças já suscitadas, conferir às mulheres o benefício normativo juslaboral.
Anoto, verbi gratia, outras hipóteses normativas em que se concebeu a igualdade não a partir de sua formal e irreal acepção, decorrente do liberalismo clássico, mas como um fim necessário em situações de desigualdade: i) direitos trabalhistas extensivos aos trabalhadores não incluídos no setor formal, como é o caso das trabalhadoras domésticas; ii) licença-maternidade, sem prejuízo do emprego e do salário, com prazo superior à licença-paternidade; iii) prazo menor para a mulher adquirir a aposentadoria por tempo de serviço e de contribuição, nos termos dos arts. 40, inciso III e 201, § 7º, da Constituição Federal; iv) Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, que dispôs que cada partido ou coligação deve reservar o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo (art. 10, § 3º, com a redação dada pela Lei nº 12.034, de 2009); e v) “Lei Maria da Penha” (Lei nº 11.340/2006), que estabeleceu uma série de proteções especiais às mulheres vítimas de violência doméstica.
A Segunda Turma desta Corte, no julgamento do MS nº 29.963, Relator o Ministro Gilmar Mendes, entendeu ser possível, em etapa de concurso público, exigir-se teste físico diferenciado para o homem e a mulher quando preenchidos os requisitos da necessidade e da adequação para o discrímen. Vide importante trecho do voto:
“No caso, há que se destacar que as atribuições previstas para o cargo pleiteado, notadamente ‘a garantia da incolumidade física de dignitários, testemunhas e de pessoas ameaçadas que conduzam’, exigem bom condicionamento físico, motivo pelo qual concluo que a exigência do teste de aptidão física possui estrita pertinência com as atribuições do cargo e que é perfeitamente legítimo à Administração Pública selecionar os candidatos mais bem qualificados.
Ademais, no que se refere à suposta violação do princípio da isonomia tendo em vista o estabelecimento de regras distintas para homens e mulheres para realização do teste físico, acolho o parecer do Ministério Público Federal que, aplicando a teoria do impacto desproporcional, assentou o seguinte:
‘Se, na prova de esforço físico, considerasse absolutamente iguais homens e mulheres, criaria para estas um impacto desproporcional. Sabe-se que os homens possuem maiores condições de resistência física do que as mulheres, o que se prova pela mera verificação do que ocorre nos esportes. Não há, em qualquer competição que envolva resistência física, disputa entre homens e mulheres. Cada um desses grupos compete entre si’.
Assim, entendo que a exigência específica do teste de aptidão física no certame em questão, para cargo de Técnico de Apoio Especializado/Transporte, não infringe o Texto Constitucional.
Ante o exposto, casso a liminar anteriormente deferida e voto pela denegação da segurança” (DJe 23/9/11).
O amparo da jurisprudência e da doutrina a essa tese também foi bem lembrado pela Procuradoria-Geral da República em seu respeitável parecer (fl. 426):
“Ademais, a CLT, ao estabelecer um Capítulo destinado à ‘PROTEÇÃO DO TRABALHO DA MULHER’, demonstrou inequívoco interesse em estabelecer regime jurídico distinto entre homens e mulheres, em situações específicas. Desse modo, não se afigura inconstitucional a diferenciação estabelecida em razão de critério objetivo e razoável (saúde da mulher), tal como ocorre na espécie.
O tratamento diferenciado entre homem e mulher já foi admitido pelo Supremo Tribunal Federal:
’EMENTA: Promoção de militares dos sexos masculino e feminino: critérios diferenciados: carreiras regidas por legislação específica: ausência de violação ao princípio da isonomia: precedente (RE 225.721, Ilmar Galvão, DJ 24.04.2000)’(AI-AgR 511.131-BA – Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ de 15.04.2005).
Vale transcrever excerto do artigo ‘A Interpretação do Artigo 384 da Consolidação das Leis de Trabalho e o Tratamento Isonômico entre Homens e Mulheres’, acerca do tema:
‘Sem embargo, com a devida vênia à tese defendida por parte da doutrina e da jurisprudência pátrias, que perfilham entendimento no sentido de ser inconstitucional o texto do art. 384 da CLT, entende-se que a proteção ao labor da mulher quanto a sua duração configura-se proteção à situação desigual, sem qualquer ofensa ao princípio constitucional da igualdade.’(OLIVEIRA, Maria Fernanda Pereira de. In: Repertório IOB de jurisprudência: trabalhista e previdenciário, n. 13, p. 425-422, 1ª Quinzena de julho de 2008).”
Dúvida não há de que a Constituição Federal de 1988 representou um marco contra a discriminação da mulher, inclusive nos ambientes laboral e familiar. No entanto, não vislumbro motivos para que se utilize desse argumento para eliminar garantias que foram instituídas por escolha do legislador, dentro de sua margem de ação.
Ainda que existisse alguma dúvida – o que não ocorreu com este Relator – na espécie caberia a aplicação do “forema” in dubio pro legislatore, que, para alguns doutrinadores, como García Amado (apud PULIDO, Carlos Bernal. El neoconstitucionalismo a debate. Bogotá: Instituto de Estudios Constitucionales, 2006, p. 17), é, em verdade, uma regra de preferência quando há zona de penumbra quanto à constitucionalidade ou não de uma decisão discricionária adotada pelo legislador.
Da mesma forma, quando se vislumbra, pela abertura constitucional, uma pluralidade de concretizações possíveis, há que se respeitar o “pensamento possibilista”, há muito defendido por Peter Häberle, apoiado no escólio de Niklas Luhmann (Komplexität und Demokratie, PSV, 4, 1968, p. 494 e ss.), na defesa da própria democracia, desde que, como bem anotou aquele filósofo e jurista, as alternativas surjam dos marcos constitucionais (HÄBERLE, Peter. Pluralismo y constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad abierta. Estudio preliminar y traducción de Emilio Mikunda-Franco. Madrid: Tecnos, 2002, p. 68).
O dispositivo atacado não viola o art. 7º, inciso XXX, da Constituição Federal, na medida em que não diz respeito a tratamento diferenciado quanto ao salário a ser pago a homens e mulheres, a critérios diferenciados de admissão, ou mesmo a exercício de funções diversas entre diversos gêneros. Essa norma, como já salientei, com o devido respeito àqueles que advogam a tese contrária, não gera, no plano de sua eficácia, prejuízos ao mercado de trabalho feminino. Aliás, o intervalo previsto no art. 384 da CLT só tem cabimento quando a trabalhadora labora, ordinariamente, com jornada superior ao limite permitido pela lei e o empregador exige, diante de uma necessidade, que se extrapole esse período. Adotar-se a tese da prejudicialidade nos faria inferir, também, que o salário-maternidade, a licença-maternidade, o prazo reduzido para a aposentadoria, a norma do art. 391 da CLT, que proíbe a despedida da trabalhadora pelo fato de ter contraído matrimônio ou estar grávida, e outros benefícios assistenciais e previdenciários existentes em favor das mulheres acabariam por desvalorizar a mão de obra feminina.
Portanto, há que se concluir que o art. 384 da CLT foi recepcionado pela atual Constituição, visto que são legítimos os argumentos jurídicos a garantir o direito ao intervalo. O trabalho contínuo impõe à mulher o necessário período de descanso, a fim de que ela possa se recuperar e se manter apta a prosseguir com suas atividades laborais em regulares condições de segurança, ficando protegida, inclusive, contra eventuais riscos de acidentes e de doenças profissionais. Além disso, o período de descanso contribui para a melhoria do meio ambiente de trabalho, conforme exigências dos arts. 7º, inciso XXII e 200, incisos II e VIII, da Constituição Federal.
Descabe à Suprema Corte decidir sobre a interpretação da norma em seu nível infraconstitucional e definir de que forma se dará seu cumprimento; qual será o termo inicial da contagem; se haverá ou não o dever de se indenizar o período de descanso e quais serão os eventuais requisitos para o cálculo do montante.
Antecipo que não considero que essa norma constitua um núcleo irreversível do direito fundamental, ou que implique o mínimo existencial social do direito fundamental da trabalhadora mulher. Nesse sentido, não há que se olvidar que, em sua redação primitiva, verbi gratia, os arts. 379 e 380 da CLT proibiam o trabalho noturno para as mulheres. Após a avaliação pelo constituinte e pelo legislador, esses dispositivos acabaram sendo revogados pela Lei nº 7.855, de 24/10/89, remanescendo em vigor hoje, por outro lado, o art. 381 da CLT, o qual estabelece que o trabalho noturno das mulheres terá salário superior ao diurno, fixa um percentual adicional de 20% (vinte por cento) no mínimo (§ 1º) e estipula que “cada hora do período noturno de trabalho das mulheres terá 52 (cinquenta e dois) minutos e 30 (trinta) segundos” (§ 2º).
No futuro, havendo efetivas e reais razões fáticas e políticas para a revogação da norma, ou mesmo para a ampliação do direito a todos os trabalhadores, o espaço para esses debates há de ser respeitado, que é o Congresso Nacional.
Ante o exposto, voto pelo não provimento do recurso extraordinário e pela fixação das teses jurídicas de que o art. 384 da CLT foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 e que a norma se aplica a todas as mulheres trabalhadoras”.
Por: José Geraldo de Santa Oliveira é Assessor Jurídico do Sinpro Goiás
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Jorn. FERNANDA MACHADO
Assess. de Imprensa e Comunic. do Sinpro Goiás