Coordenador da Contee fala da necessidade do Brasil e países latino-americanos assumirem o compromisso de regular instituições públicas e privadas de ensino
Em junho de 1918, estudantes argentinos aprovaram o manifesto “La juventud argentina de Córdoba a los hombres libres de Sudamérica”, considerado, ainda hoje, o principal documento da história das universidades latino-americanas. Já em junho deste ano, quando a reforma universitária de Córdoba celebrou seu centenário, participei, na Argentina, juntamente com outros diretores e diretoras da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee, da reafirmação de seus princípios, entre os quais a gestão compartilhada entre os diferentes setores da comunidade universitária; a liberdade de cátedra; a autonomia universitária; e a garantia de acesso à educação superior para todos.
A carta de 1918 era ainda um ato em defesa da projeção latino-americana e contra a influência do imperialismo (lembrando que o mundo acabava de passar pela Primeira Guerra Mundial) nos países do subcontinente. Infelizmente, todos esses princípios encontram-se ameaçados cem anos depois. Tanto é assim que o documento de cuja aprovação participamos, no mês passado, durante a III Conferência Regional de Ensino Superior (Cres 2018), na cidade-símbolo do modelo de universidade defendido há um século, traz em seu texto a observação de que as “frágeis regulamentações da oferta externa aprofundaram os processos de transnacionalização e a visão mercantilizada do ensino superior, impedindo, quando não, em muitos casos, cortando o efetivo direito social à educação”. A nova carta destaca ainda ser “fundamental reverter essa tendência”, instando os países da América Latina e do Caribe “a estabelecer sistemas rigorosos de regulamentação do ensino superior e de outros níveis do sistema educacional”.
No Brasil, a ameaça denunciada no manifesto pode ser sintetizada num nome: Kroton Educacional S.A. Isso não quer dizer que a companhia seja a única responsável pelo processo de mercantilização, financeirização e desnacionalização do ensino superior no país. Obviamente grupos como Estácio, Anima ou Laureate estão aí, com suas ações disponíveis no “mercado” para comprovar que o alcance do perigo ultrapassa aquele representado por uma única empresa. No entanto, por seu porte global — sendo, depois da aquisição da Anhanguera, a maior corporação de educação do planeta — e pela voracidade com que engole tanto instituições de ensino quanto recursos públicos, a Kroton pode ser tomada como símbolo da nefasta transformação da educação em mercadoria.
Notícias da última semana apontaram que os papéis da empresa subiram até 20% no Ibovespa, de acordo com os índices divulgados no último dia 6 de julho. No último dia 9, outra alta, superior a 6%. Parte disso é resultado da “reestrutura organizacional” anunciada pela companhia a fim de “capturar de forma adequada” a “tendência de hibridização” entre ensino presencial e a distância, o que implica cursos com alguns componentes do currículo ofertados dentro de sala de aula e outros não presencialmente — e isso sem que haja qualquer regulamentação e constituição de uma política de EaD e de cursos com qualidade, a qual combata o comércio educativo. Outra parte que explica a subida das ações da Kroton na bolsa, já apontada na última semana pela Contee é a informação de que o governo disponibilizará 50 mil novas vagas no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) para o segundo semestre. O interesse da empresa é claro: mais dinheiro público para sustentar o capital privado.
Frente às pressões dessa e de outras empresas para que a educação superior seja uma atividade cada vez mais lucrativa, é essencial, parafraseando a nova Carta de Córdoba, que o Brasil e os demais países latino-americanos assumam o compromisso de regular instituições públicas e privadas, quaisquer que sejam sua modalidades, e tornem efetivo o acesso universal, a permanência e a qualificação do ensino superior.
José de Ribamar Virgolino Barroso é coordenador da Secretaria de Finanças da Contee