O projeto de reforma trabalhista sinalizado pelo atual governo brasileiro é uma “imposição dos interesses financeiros que comandam a economia do país”, aponta Ricardo Antunes, professor de Sociologia do Trabalho da Unicamp e autor de diversos livros sobre o tema, entre eles “Sentidos do Trabalho”, publicado no Brasil, na Argentina, nos Estados Unidos, na Inglaterra, Holanda, Itália, Portugal e Índia; e “Adeus ao trabalho?”, editado no Brasil, na Argentina, Venezuela, Colômbia, Espanha e Itália.
“O cenário que vamos ter nos próximos dois trimestres é desalentador, e vai fazer com que o movimento sindical e os movimentos sociais lutem ardorosamente.”
A repercussão do trabalho de Antunes em países do mundo inteiro permitiu ao professor debater e analisar tendências globais do mercado de trabalho. Em entrevista por telefone ao Jornal do Brasil na noite de quarta-feira (31), Antunes traçou o caminho que o mercado de trabalho tem seguido no mundo, como os trabalhadores têm procurado se organizar para lidar com novos cenários e fez uma leitura da situação brasileira em meio à crise política e econômica.
“Nós vamos entrar numa época de confrontação social, de manifestações sindicais e sociais”, destacou Antunes na entrevista. “O período que vai de 2016 a 2018 será uma sucessão amplificada e articulada de crises sociais e crises políticas.”
Na ocasião de sua posse, o presidente Michel Temer destacou que vai “modernizar as leis trabalhistas, para garantir os atuais e gerar novos empregos”. Para Antunes, tal modernização abre caminho para uma série de mudanças “profundamente destrutivas” para a classe trabalhadora.
“Estamos no pior momento. Governo nenhum que destrói direitos diz que vai destruir direitos”, ressalta Antunes. “Se o governo dissesse ‘eu vou devastar’, ‘eu vou fazer uma verdadeira devastação social’ ele teria o repúdio. Então, a grande alquimia, a falácia que é profunda falsidade, é dizer que eu vou criar direitos destruindo direitos.”
Antunes acredita, contudo, que tais medidas “não são inevitáveis”: “O movimento sindical pode impedi-las, os movimentos sociais podem impedi-las”.
Confira a entrevista, na íntegra:
Jornal do Brasil – Na semana passada, o então presidente interino defendeu a proposta de reforma trabalhista, com o argumento de que a intenção não seria retirar direitos, mas manter empregos. Ele também informou que deveria enviar a proposta de reforma trabalhista e de regulamentação do processo de terceirização ao Congresso até o final deste ano. Hoje [quarta-feira], prometeu “modernizar as leis trabalhistas”, “para garantir os atuais e gerar novos empregos”. No ano passado, quando conversamos, o senhor reforçou que o projeto de terceirização aprovado pela Câmara dos Deputados geraria escravos modernos, e que era imperioso derrotá-lo. Onde estamos agora?
Ricardo Antunes – Estamos no pior momento. Governo nenhum que destrói direitos diz que vai destruir direitos. Nós acabamos de ver, por exemplo, na França, o governo de [François] Hollande iniciar um processo de destruição de uma parcela importante dos direitos do trabalho, dizendo que não ia destruir direitos.
A vitória parlamentar que consolida o ‘golpe’, no sentido parlamentar do termo, que hoje [na quarta-feira] se consolidou impeachmando o governo Dilma, abre caminho para uma série de mudanças que são profundamente destrutivas em relação à classe trabalhadora. Isto é muito importante que se tenha claro.
Primeiro ponto, o preceito, o princípio fundamental do governo Temer é o princípio do “negociado sobre o legislado”. O projeto “Ponte para o Futuro”, que na verdade é um atalho para o abismo social, diz que vai haver negociado sobre o legislado sem a perda de direitos. Só que é impossível estabelecer o primado negociado sobre legislado que não seja para reduzir direitos. A ideia do governo não é estabelecer o negociado sobre o legislado para avançar nos direitos, é para reduzir os salários, é para flexibilizar a jornada de trabalho, é para intensificar o banco de horas, é para fazer com que haja redução da jornada com redução do salário.
Então, é evidente que esse preceito do negociado sobre o legislado enfraquece o conjunto da classe trabalhadora e traz a corrosão dos direitos. Ainda nos sindicatos que têm alguma força, a perda será menor, mas será perda. Não há negociado sobre legislado em condição de crise que beneficie a classe trabalhadora.
Mas você imagina, com o conjunto de sindicatos do país inteiro que tem menor força organizativa, é óbvio que a ideia é reduzir direitos que foram adquiridos desde a CLT. Nenhum governo vai dizer abertamente, ainda mais um governo conservador e sem legitimidade, porque resulta de, digamos, um rearranjo, em que o programa que ele quer implementar não tem o respaldo das urnas.
O resultado disso é que, junto com o negociado sobre o legislado, vem a ideia de avançar na terceirização do trabalho. A terceirização do trabalho é também dita pelo governo como um caminho para criar empregos, mas isso é de uma falsidade enorme.
Alguém pode dizer, “mas, professor, existem hoje 12 milhões de terceirizados no Brasil, são 12 milhões de empregos”. Um número significativo de trabalhadores hoje é terceirizado — homens e mulheres terceirizados –, só que os trabalhadores terceirizados e as trabalhadoras terceirizadas trabalham em média mais horas semanais do que os trabalhadores regulados pela CLT. Se eles trabalham mais horas e recebem menos, onde existem três ou quatro trabalhadores ou trabalhadoras celetistas, eles vão ser substituídos por três ou dois trabalhadores ou trabalhadoras terceirizados.
Basta um pouco de aritmética e de matemática para saber que onde um número x de trabalhadores realizava um certo tipo de trabalho, agora esse mesmo trabalho, essa mesma atividade será realizada por um número inferior. Ou seja, a terceirização desemprega. Ela não emprega. Ela empregou 12 milhões, mas ela desempregou 15 ou 16 milhões, em condições mais adversas, porque os salários são significativamente menores e em condições de trabalho que frequentemente burlam a legislação do trabalho.
O resultado desse desenho, dessa propositura do governo é destruir a CLT. E o que significa destruir a CLT? É destruir o que a classe trabalhadora considera como sendo a sua Constituição, porque desde a sua implementação em 1943 que ela desenhou um conjunto de direitos sociais do trabalho.
O IBGE publicou que nós já estamos com 11,6% de desemprego, que significam 11,8 milhões trabalhadores e trabalhadoras sem emprego. E esses dados minimizam, porque nós sabemos que um trabalhador ou uma trabalhadora que em certo período não procura mais emprego, porque não encontra emprego, some das estatísticas como desempregado. E por que ele não procura emprego? Porque é muito caro, trabalhoso, árduo e difícil procurar emprego por dois, três, quatro, cinco dias. Você precisa de dinheiro para sair, pagar a condução, alimentar-se, no final do dia você volta de uma jornada extenuante sem nenhuma resposta positiva. Um mês depois o trabalhador desiste, porque ele percebe que não há portas abertas. E ele some da estatística como desempregado. O mesmo vale para quem trabalha algumas horas por semana. Quem lava carros algumas horas por semana não está empregado. Há uma massa enorme de desempregados e subempregados que as estatísticas não contemplam.
Por isso o projeto é nefasto, e ele é uma imposição dos interesses financeiros que comandam a economia do país. Isso atinge bancários, metalúrgicos, trabalhadores de call center, jornalistas, professores, o conjunto de trabalhos acaba tendo como resultante o enfraquecimento.
Agora, se o governo dissesse “eu vou devastar”, “eu vou fazer uma verdadeira devastação social”, ele teria o repúdio. Então, a grande alquimia, a falácia, que é profunda falsidade, é dizer que eu vou criar direitos destruindo direitos. É disto que se trata.
Não há nenhuma pesquisa séria, rigorosa, com critério científico, realizada nas universidades, que demonstre vantagens para a terceirização. Quem defende que a terceirização é vantajosa é a Febraban, são as federações das indústrias, etc.
Não é por acaso que, algumas semanas atrás, o presidente da Confederação Nacional das Indústrias fez o absurdo de propor que a classe trabalhadora brasileira pudesse ter uma jornada de até 80 horas por semana, dizendo, um erro grotesco, que assim já era até na França. Quer dizer, é um erro crasso, porque a França é um país que, digamos assim, ainda que o governo Hollande esteja tentando destruir parte desses direitos, os trabalhadores franceses, com a trajetória que têm, consolidaram direitos e, segundo, mostra até onde pode chegar o sonho de setores do empresariado industrial que querem isto que eu disse na entrevista [anterior ao JB] e que é inteiramente atual: recuperar formas de escravidão moderna de trabalho. Nem na escravidão os trabalhadores trabalhavam 80 horas por semana, para que se tenha uma ideia do absurdo.
Depois nós sabemos que o presidente da CNI negou a fala, mas a fala está gravada, foi citada pela grande imprensa, certamente a grande imprensa não inventou, foi um descuido do presidente, que mostra até onde é capaz de avançar o imaginário empresarial.
Por fim, os jornais de hoje [quarta-feira] mostram também que até o número de trabalhadores autônomos, os chamados “empreendedores”, recuou neste último trimestre porque o desemprego não só atingiu o emprego formal como também estão sendo fechadas atividades pequenas, criadas por esses trabalhadores que acreditaram no chamado “empreendedorismo”, percebendo que é muito mais difícil num contexto de crise sobreviver. E a média salarial também se reduziu neste último trimestre.
Este é o cenário, portanto, muito desfavorável para a classe trabalhadora.
Jornal do Brasil – Como o professor analisa o argumento que diz que é preciso reformar as relações de trabalho porque a CLT é velha e porque seria preciso reduzir os custos da produção para alavancar a economia?
Ricardo Antunes – Coloco esta fala exatamente como a fala do Consenso de Washington no início dos anos 1990, quando dizia “é preciso privatizar tudo, é preciso desregulamentar tudo para que haja crescimento e expansão”, e nós só temos destruição, só temos maior desemprego, maior empobrecimento da população. Porque exatamente onde esse sistema se expandiu, mais ele destruiu.
Vou dar um exemplo, que é emblemático. Existe na Inglaterra, já há um certo tempo, um sistema de contratos chamado zero hour contract, contrato de zero hora. Ele vale para trabalhadores de cuidados, o chamado care em inglês, enfermeiros, médicos, jornalistas, transportadores de passageiros, eletricistas, etc., é uma gama de atividades. Como funciona? O trabalhador ou a trabalhadora tem contrato de zero hora, o que significa que ele não tem uma jornada fixa, mas tem que ficar à disposição dos chamados. Se num dia ele não recebe nenhum chamado, ele não tem trabalho, no segundo dia ele não recebe nenhum chamado, ele também não tem nenhum trabalho, no terceiro, quase terminando as 72 horas que ele está esperando, ele recebe um chamado, e ele simplesmente vai receber por este chamado que ele fez.
Vejamos, um médico vai atender uma família de pacientes, tem lá um aplicativo que vai receber por este atendimento, e ao mesmo tempo o aplicativo, ou seja, a empresa que detém o controle do seu trabalho — McDonald’s e tantas outras empresas usam amplamente esse sistema na Inglaterra, grandes empresas –, o que vai acontecer é que ele vai receber pelo horário que trabalhou, só que ele está há 72 horas disponível e recebe, digamos, se o seu trabalho durou uma hora, uma hora de trabalho.
Isso, evidentemente, é exemplo cabal da brutalidade das novas modalidades de trabalho que consideram os trabalhadores qualificados, tendo a disponibilidade total pro trabalho, só percebendo remuneração quando efetivamente trabalham. Isto se facilitou muito pelo mundo do trabalho digital, online, que faz com que trabalhadores assalariados e assalariadas das tecnologias da informação, e de tantos outros setores, munidos de um celular, estejam em disponibilidade eterna para o trabalho, ainda que essa disponibilidade eterna para o trabalho tenha como resultado uma remuneração precária e frequentemente insuficiente.
Os empresários dizem “ora, mas ele aceita o trabalho zero hora se ele quiser”. É verdade. Mas por que ele aceita? Porque não tem outro trabalho. O trabalhador, quando está desempregado, aceita um trabalho em que receba alguma coisa, num sentido cada vez mais degradante. E essa realidade é impulsionada pela terceirização, ela é impulsionada por essas regras de uma flexibilização total do mercado de trabalho.
No Reino Unido, já chega à casa de 1 milhão de trabalhadores. O problema é forte, e tem um debate intenso inclusive nos sindicatos porque é uma forma de escravidão moderna do trabalho online. Se você combinasse esse trabalho online com a precarização dos trabalhos offline, do trabalho manual, dos trabalhos, digamos, mais braçais, os trabalhos de vários setores de serviços que também são online mas muito duros como trabalho de call center, o quadro é bastante negativo no que diz respeito ao mundo do trabalho.
No Brasil, nós já temos esse contrato [de zero hora]. Há médicos fazendo isso. Se você liga para pedir um eletricista para cuidar da sua casa, a companhia de seguro chama o trabalho de um contrato de zero hora. Ele presta esse trabalho, recebe por isto e fica chamando outro chamado. Se tem, tem. Se não tem, não tem.
O Uber é outro caso similar. Eu fui conhecer o sistema de Uber outro dia, conversando com um motorista. Ele era veterinário que simplesmente tinha perdido o seu trabalho na clínica veterinária e, como ele tinha um carro, tinha a alternativa de utilizar-se do automóvel para atender chamados de modo que ele pudesse não ficar desempregado e pagar as contas. Esta é uma tendência que, se o PLC 30/2015 [conhecido como projeto de terceirização], que está hoje no Senado, for aprovado e permitir o fim da separação entre a atividade-meio e a atividade-fim, e a consequente permissão da terceirização total, nós estamos abrindo todas as portas para uma desregulamentação geral do trabalho.
Jornal do Brasil – Como fica a ação sindical neste contexto?
Ricardo Antunes – São dois elementos importantes. Primeiro, onde há resistência sindical, os empresários não conseguem implementar [reformas] com esta intensidade. Por exemplo, a França, que tem tradição de luta sindical, a Alemanha, que também tem sindicatos fortes, etc., consegue segurar e impedir a intensidade dessas medidas de desregulamentação do trabalho. Na Inglaterra, pelo contrário, onde o neoliberalismo foi devastador, muitos sindicatos foram profundamente atingidos. Nos Estados Unidos e em outros países, todos eles são neoliberais, mas alguns são mais devastadoramente neoliberais, como inclusive foi o caso do neoliberalismo inglês, um verdadeiro laboratório do neoliberalismo na Europa, mais agressivo, com Margaret Thatcher, depois com John Major.
Onde os sindicatos são mais fortes, a resistência é maior. Agora, a defesa dessas medidas [do governo no Brasil] é antissindical, é diminuir a solidariedade entre os trabalhadores, é criar situações, onde, digamos, não consigam preservar os laços de solidariedade. Porque, a terceirização é uma contratação entre empresas, a contratante e a contratada, no qual a empresa contratada vai oferecer os trabalhadores que são solicitados pela empresa contratante. Então não há um vinculo empregatício entre a empresa e os trabalhadores que trabalham nela. Isto permite toda a gama de burla, fraude de direitos e dificulta a organização sindical, na medida em que você tem uma tendência à individualização das relações de trabalho.
O PJ, a “pejotização”, é a ideia de converter o trabalhador ou a trabalhadora como pessoa jurídica e estabelecer o contrato de prestação de serviços. Quando ele adoece, por exemplo, se ele não tiver bom sistema privado de saúde, não tem sequer recursos para poder ter um atendimento de saúde. E essa pulverização, esta individualização, este exacerbar do individualismo e das relações individualizadas entre empresa terceirizada e trabalhadores, tudo isso tende a enfraquecer bastante a organização sindical.
É vital, portanto, que os sindicatos compreendam isso. Para fazer um paralelo, do século 19 para o século 20, quando as empresas deixaram de ser empresas mais tradicionais, empresas de origem anteriormente manufatureira que se tornaram grandes empresas industriais, os sindicatos deixaram de ser sindicatos de artesãos, e tiveram que criar o sindicato da grande indústria. Hoje os sindicatos estão vivendo um desafio assemelhado ainda mais profundo.
Em vez de grandes empresas tayloristas e fordistas do século 20, que magistralmente o Chaplin caricaturou na sua obra-prima “Os tempos modernos”, hoje esta ideia de que cada um deve ter uma relação de trabalho com uma empresa que contrata, sem a mediação do coletivo, vai obrigar os sindicatos a reconfigurar, a redesenhar, as formas de organização sindical. Isso não levará, no meu entendimento, ao fim dos sindicatos, mas leva a uma necessidade imperiosa de os sindicatos se reorganizarem.
Por exemplo, no passado, tínhamos sindicatos das telefonistas que eram fortes, no Rio tinha-se a empresa estatal de telefonia, a qual correspondia o Sindicato dos Trabalhadores Telefônicos do Rio de Janeiro, assim valia para São Paulo e para outros estados sucessivamente. Com a criação exponencial do trabalho online, do chamado trabalho digital das teleoperadoras — 70% do contingente é feminino no Brasil, com esse trabalho das teleoperadoras, online, digitalizado, nasceu uma categoria, que é a dos trabalhadores e trabalhadoras de Telemarketing. Muito diferente do antigo trabalho do sistema de telefonia pública que existia nos vários estados do Brasil nos anos 1960/1970. Isso está obrigando a que ou sindicatos reelaborem e compreendam essa nova forma de ser, essa nova morfologia do trabalho, ou está dando nascimento de novos sindicatos que já estão tratando como realidade.
Você sabe que muitas trabalhadoras do telemarketing estão isoladas umas das outras, há muita rotatividade, muita informalidade, isso tudo é uma via que dificulta os sindicatos. Os sindicatos são obrigados a repensar, a compreender essa nova morfologia do trabalho e como é possível representá-las com autenticidade, com sentido de classe, e voltado para os reais interesses das categorias que os sindicatos representam. É por certo o desafio vital, um desafio global.
Se você vai à China, se você vai à Índia, à Inglaterra, se vamos aos Estados Unidos, à França, Itália — tenho viajado para todos esses países, tenho tido a sorte de meus livros terem sido publicados em todos esses países que eu me referi –, essa realidade é global, e os sindicatos também sofrem um desafio global. E há experiências, sindicatos que procuram dentro deste quadro novo se reorganizar, ainda que em uma situação mais adversa.
Mas vou dar uma pista, ainda que profundamente heterogeneizada a classe trabalhadora, ainda que bastante fragmentada e bastante complexificada, há uma tendência comum em tantas e diversas categorias profissionais. Como é essa tendência comum? Relativamente homogênea, em meio a tanta heterogeneidade, como essa tendência é homogeneizante? É a luta contra a precarização do trabalho, que atinge os jornalistas, os trabalhadores da tecnologia de informação e comunicação, os trabalhadores da indústria de software, atinge também os trabalhadores de call center, atinge trabalhadores metalúrgicos, atinge trabalhadores das cadeias produtivas globais.
Hoje, as empresas-mãe, as empresas centrais, elas têm a sua marca e elas vão terceirizando a sua produção em várias partes do mundo. A Apple, por exemplo, tem como grande montadora a Foxconn, na China — a Foxconn também tem unidade no Brasil. Isto cria, inclusive, uma dificuldade, porque a Foxconn realiza toda a montagem dos produtos da Apple, mas não aparece a marca Foxconn, aparece a marca Appple. E nem todos sabem que a Apple é montada pela Foxconn.
Em 2010, na Foxconn na China, na unidade de Shenzhen — os salários eram entre 100 e 200 dólares, dependendo do nível de hora extra –, houve 17 tentativas de suicídio de trabalhadores dado o estressamento, a superexploração do trabalho. Das 17 tentativas de suicídio, 13 delas tragicamente ocorreram. O que levou a uma grita generalizada, que inclusive acertou a Apple, porque não só se pressionava a Foxconn como a Apple que contratava a Foxconn. Então, o que a Foxconn é? Uma grande empresa transnacional de terceirização global. É verdade que, no caso da China, há ausência de sindicatos livres, isso tem desafiado a classe trabalhadora chinesa a pensar em alternativas, a pensar em outras formas de movimento, assim como a classes trabalhadora em tantas partes do mundo.
Jornal do Brasil – O senhor também tinha comentado sobre o potencial de mudanças como o projeto de terceirização de rebelar os trabalhadores e trabalhadoras.
Ricardo Antunes – Há exemplos de empresas de call center e telemarketing onde tem havido manifestações, greves. Por exemplo, a Foxconn que eu citei esses suicídios e a intensidade da exploração do trabalho, isso vale para muitas outras empresas similares. Isso tem levado às mais distintas formas de rebelião. No caso da Foxconn da China, o uso da internet mostrando as dificuldades das condições extenuantes de trabalho e intensificação da expansão do trabalho.
Eu coletava na semana passada o depoimento de uma trabalhadora de montagem de produtos digitalizados no Brasil. Ela dizia “olha, a gente tem a sensação de que um trabalho é separado do outro, que eu estou pondo um vidro aqui de um equipamento que eu nem sei o que que é”, mas só o fato de ela fazer essa pergunta já é sinal de uma percepção de que algo não vai bem.
Há greves no setor de telemarketing no Brasil. Nós tivemos greves. Há pesquisas novas, há esboços de organização sindical, há descontentamentos que vão desde o uso da internet até greves, paralisações, revoltas. É por isso que nós estamos tendo tipos diferentes de revolta, as greves ainda são recorrentes, a ideia de ter um sindicato que representa os trabalhadores e trabalhadoras também é vital.
Por que eles buscam o sindicato por mais que a campanha antissindicato seja forte? Porque o sindicato é uma ferramenta de defesa da classe trabalhadora. Os sindicatos têm que representar, porque se não representarem, esses trabalhadores vão buscar outros caminhos, outras formas de manifestação de rebeldia, de luta, quer no plano sindical, quer fazendo greves, quer através de depoimentos por internet e outras, a classe trabalhadora demonstra a forma da intensidade da exploração a que estão sujeitos.
Jornal do Brasil – O senhor pode falar sobre a questão do desemprego que já vinha se desenhando devido ao esgotamento de um ciclo econômico, e o desemprego que poderia vir agora; e a precarização do trabalho que já tínhamos antes e a precarização do trabalho que pode haver agora, no Brasil?
Ricardo Antunes – Nós tivemos no Brasil entre 2003 e 2013 um crescimento expressivo dos empregos, na casa de mais de 20 milhões, porque o país teve um ciclo de expansão econômica forte. Acontece, entretanto, que, a partir de 2013, 2014, a crise econômica global passou a ter repercussões mais profundas nos chamados Brics, na China, na Índia, na Rússia, no Brasil, na África do Sul, em vários outros países, especialmente Índia, China, Brasil. Este primeiro movimento, aliado a uma série de equívocos que vinham sendo praticados pela política econômica vigente, acabaram levando a um esgotamento do ciclo, acabaram levando a um quadro onde o mito do país do grande crescimento, o mito do país da grande expansão, o mito do país que ia para frente começasse a soçobrar.
Nós [Brasil] começamos a ter, então, a partir de fim de 2014, início de 2015, uma acentuação das tendências declinantes e o reaparecimento forte do desemprego. Só para tratar deste último período, uma política completamente equivocada, o que fez o governo Dilma? Foi buscar um ajuste fiscal bastante nefasto, comandado por [Joaquim] Levy, que era o segundo homem de um grande banco no Brasil, ou seja, completamente imbuído de um projeto neoliberal de desregulamentação do trabalho e de um ajuste fiscal privatista, que diminuiu os efetivos de estado na economia.
Esse ajuste fiscal brutal retraiu fortemente a economia, porque foi exatamente o receituário utilizado pelo sistema financeiro para preservar superávit primário, primeiro pagar juros da divida, depois tentar um novo ciclo de expansão. Quando o governo Dilma entra na crise política profunda que entrou — isso começa em 2015, num quadro que vai se acentuando — a política recessiva também é implementada, isso fazendo com que aquela tendência declinante fosse se expandindo, e o desemprego passa a aumentar.
Quando Dilma sofre a abertura do processo de impeachment na Câmara dos Deputados, quer dizer, no meio de uma crise política profunda, houve uma retroalimentação, crise política e crise econômica. Sobe, inicialmente em forma de interino, o governo Temer, e este governo vai começar a tomar uma série de medidas claramente de desregulamentação do trabalho, de botar o pé no breque, e gerenciar uma política de arrocho, de tal modo que você tivesse como consequência não mais o incentivo à produção, mas um desincentivo à produção e o consequente aumento do desemprego.
Por isso que, desde que o Temer assumiu, há mais de 100 dias, o desemprego não para de aumentar. O seu receituário é ainda mais destrutivo do que o do primeiro ano de Dilma. É um receituário da privatização, da desregulamentação e da precarização do trabalho, os três tomados em um acelerador em ritmo alto.
Então, o que está acontecendo neste último período? O crescimento do desemprego que estamos vendo neste último trimestre — maio, junho e julho — é, por um lado, ainda saldo das medidas tomadas pelo ministro banqueiro Levy no primeiro ano do governo Dilma. Esse trimestre já traz aumento desse desemprego porque as medidas tomadas pelo também banqueiro [Henrique] Meirelles no governo Temer são medidas destrutivas em relação ao crescimento de emprego e destrutivas em relação ao trabalho.
Qual é o resultado? Nós chegamos hoje a níveis oficiais de quase 12 bilhões de desempregados, quando na verdade nós temos níveis muito maiores. E no movimento da economia que nós estamos hoje… Mesmo hoje, qual foi a medida do Banco Central? Manter os juros altos. Juros altos, remuneração do sistema financeiro, recursos são drenados para garantir o superávit primário, e o Estado perdeu aquela impulsão que dava para o incentivo de novos empregos.
Por isso que qualquer análise séria reconhece que o cenário que vamos ter nos próximos dois trimestres, que compreendem o ano de 2016, é desalentador, e vai fazer com que o movimento sindical e os movimentos sociais lutem ardorosamente para impedir que essas medidas sejam aplicadas. Porque isto também é verdade, essas medidas não são inevitáveis, o movimento sindical pode impedi-las, os movimentos sociais podem impedi-las.
O que nós vimos hoje (quarta-feira) no Senado é expressão disso. Criou-se um pretexto de depor um governo pelo conjunto político da sua obra, por uma posição que não ganha as eleições. Isso independe da avaliação que se faça do governo que cai. Eu, por exemplo, sou muito crítico em relação ao governo que caiu, muito conciliador e praticamente sem nenhuma ousadia para tentar mudanças mais profundas. Só que o governo que ganha, que sai desse processo de impeachment, na verdade, ele é a pura representação desses interesses dominantes. A tendência dele é aumentar a repressão, como se viu em São Paulo [nas manifestações contra o governo de Michel Temer na quarta-feira].
Nós vamos entrar numa época de confrontação social, de manifestações sindicais e sociais, o que não depende nem de longe de imaginar que o governo vai ter calma e tranquilidade. O período que vai de 2016 a 2018 será uma sucessão amplificada e articulada de crises sociais e crises políticas, porque esse governo não tem legitimidade.
O decisivo neste momento seria que um processo de novas eleições fosse realizado, um plebiscito popular decidiria se quer ou não novas eleições, e a partir disso nós tentarmos sair desta crise. Um governo sem legitimidade não sinaliza saída da crise porque a saída da crise tem elementos de profundidade que não são resolvidos no discurso de Temer e seus ministros. A crise tem causas estruturais muito mais profundas.
Fonte: Portal Vermelho