Guimarães Rosa, em uma de suas incomparáveis e inesgotáveis construções metafóricas, dizia que toda saudade é uma espécie de velhice.
Dando razão a essa sábia metáfora, sinto-me velho, menos pelos meus 71 anos de idade, mais pela saudade de momentos que mudaram a trajetória de minha modesta vida, marcando-a para sempre.
Nesse momento de grande consternação, pela súbita morte do professor Sílvio Costa, a quem todos devemos, peço licença, em especial a ele, para rememorar cenas da trajetória que percorremos juntos; para mim, inesquecível e saudosa.
Em certo dia do longínquo mês de abril de 1980, quando lecionava no extinto Colégio Carlos Chagas, recebi, na sede dele, a inesperada visita da professora Lúcia Rincón, que fora minha contemporânea no curso de História e monitora em algumas disciplinas, que, à oportunidade, fazia-se acompanhar de um jovem professor bem falante e que gostava de pronunciar sentenças quase irrecorríveis e que até então eu não conhecia.
Feitos os cumprimentos e a devida apresentação, vim saber que o professor era Sílvio Costa, que lecionava na PUC Goiás, à época, Universidade Católica de Goiás, e que, naquele momento, buscava professores sindicalizados para, com ele, compor chapa de oposição às eleições do Sinpro-Goiás, marcadas para junho seguinte; sendo o motivo da visita a formalização do convite para eu integrar a referida chapa.
Fui prontamente convencido da relevância da formação da realçada chapa, bem como da necessidade de compô-la. Já naquele ato, entreguei-lhe os documentos necessários para esse mister.
Sem dificuldades, a chapa encabeçada pelo professor Sílvio Costa foi composta; à hora do registro, sobreveio o veto ao meu nome, por me encontrar com mensalidades sindicais em atraso, em decorrência da mudança de emprego, do Colégio Objetivo para o Carlos Chagas, sem a assinatura de nova autorização de desconto dessa contribuição. Com isso, foi recusado o registro da chapa.
Como Sílvio jamais conjugou os verbos desistir e esmorecer, ato contínuo à recusa do registro da chapa, Sílvio dirigiu-se à Delegacia Regional do Trabalho (DRT), para saber o que fazer para obter o almejado registro da chapa sob destaque. Tendo recebido orientação, do então fiscal do trabalho (auditor) Julpiano Chavez Cortez, a quitar minhas mensalidades em atraso, para que não remanescesse nenhum óbice para tanto.
Ato contínuo, Sílvio voltou à sede do Sinpro e exigiu que lhe fosse assegurado o direito de fazê-lo, por orientação da DRT. Garantido esse direito, não teve dúvidas, quitou as mencionadas mensalidades às suas expensas; somente depois é que me comunicou.
Superado o impasse e deferido seu registro, nossa chapa sagrou-se vencedora da eleição, em segundo escrutínio, uma vez que o primeiro não alcançou o quórum exigido.
Tomamos posse ao dia 20 de outubro de 1980. Começando aí, com a devida licença pela imodéstia, nova trajetória do Sinpro, com forte participação e influência no sindicalismo goiano.
Assim começou a longeva história de nossas aventuras e, por vezes, desventuras no Sinpro e no sindicalismo goiano, com alguma repercussão em âmbito nacional.
Desde então, além de participarmos de diversas gestões do Sinpro, ele, presidente em dois mandatos e eu, em quatro; fomos delegados à conferência nacional das classes trabalhadoras (Conclat), realizada em 1981; compusemos a comissão nacional pró-cut, eleita na Conclat; participamos do congresso de fundação da central geral dos Trabalhadores (CGT), tendo participado de sua direção nacional e da regional; participamos da fundação da corrente sindical classista( CSC); fomos diretores da CUT Goiás; participamos da retomada Fitee, em 1985, tendo integrado sua diretoria em diversos mandatos posteriores; participamos do processo de fundação da Contee, desde a pedra fundamental, em Arrozal-RJ, em 1986; participamos ativamente da campanha pelas eleições diretas para presidente da República e pela anistia; participamos ativamente da assembleia nacional constituinte; e, após, das assembleias estaduais e municipais, tendo a Fitee se destacado nacionalmente, não só pela atuação na constituinte nacional e nas estaduais, mas, especialmente, pelas propostas de leis orgânicas, elaboradas por Sílvio Costa, que as sustentou e debateu em diversos municípios; além de inúmeras outras atividades sindicais, locais, regionais e nacionais.
Como não me é possível esgotar toda a trajetória de Sílvio, que conheço e da qual fui partícipe, quero, ainda nesta breve reminiscência, registrar sua bravura, sua ousadia, sua incansável disposição para luta, sua abnegação sua capacidade de formulação política, seu fervor pela luta democrática e pela construção do socialismo, seu desprendimento e seu desapego a bens e ganhos materiais.
Corroboram essa assertiva dois fatos, para mim, marcantes e inesquecíveis. O primeiro foi a venda do ágio de um apartamento, em 1981, àquela oportunidade, seu único bem, e a doação do valor arrecadado para o fortalecimento do PCdoB em Goiás. O segundo, que me faz dele devedor eterno, foi também nos primeiros anos da década de 1980, quando, em decorrência de nossa atuação sindical, o Colégio Carlos Chagas, de quem eu era empregado, suspendeu meu salário e ajuizou inquérito para apuração de falta grave, perante a Justiça do Trabalho, com a finalidade de rescindir meu contrato por justa causa.
Consumada a suspensão de meu salário, Sílvio, por ato próprio e magnânimo, dividiu seu salário comigo, por dezenas de meses, até que eu conseguisse equacionar a questão judicial.
Não obstante tudo isso, questões menores abalaram nossa amizade por longo período; ocorrendo o reatamento dela, talvez por capricho do destino, que não compõe nossa agenda de convicções, exatamente na última vez que tivemos oportunidade de apertar as mãos e de nos abraçarmos, em sessão solene na Câmara Municipal de Goiânia, em meados de 2022.
Tenho o dever de confessar e o faço com alegria e elevada honra, Sílvio foi, é e será sempre, meu amigo, mestre, incentivador e meu farol de destemor e abnegação.
Amigo, Sílvio, sem nenhum favor, você conquistou o direito de fazer sua a assertiva do poeta Horácio “Non omnis moriar”, em tradução livre, “eu não morro de todo”. Isso, pela família que deixa e pelos feitos inapagáveis que construiu.
Adeus, amigo!
Autor: Professor José Geraldo de Santana Oliveira.