Com ações sistemáticas, mas sem alarde, o governo federal vem promovendo uma série de alterações na educação superior que transformam a estrutura do marco legal do setor, flexibilizam normas e impactam a qualidade do ensino e a produção de conhecimento no país. Pulverizadas, e à margem do foco fixado sobre outros grandes temas, como a Reforma trabalhista e a mal-sucedida tentativa de Reforma previdenciária, quando observadas individualmente, as mudanças parecem inócuas. Mas, no conjunto, incentivam ainda mais o avanço dos grandes grupos privados assessorados e/ou administrados por fundos de investimentos e investidores nacionais e estrangeiros do mercado de capitais, que há alguns anos ‘apostam’ na rentabilidade do negócio da educação no Brasil
Desde o ano passado, o movimento vem causando impactos acentuados: tentativas de adaptação por parte de instituições sem fins lucrativos ou daquelas de pequeno porte, demissões em massa, corte de custos e mudanças significativas em currículos. Em seus sites e diferentes plataformas de divulgação, os grupos educacionais de modelo empresarial substituem os termos acadêmicos pelos jargões do mundo dos negócios, fornecendo a interessados em investir ‘portfólios de atuação’, ‘perfis corporativos’ e dados sobre ‘ações em circulação’, ‘receita líquida’ e ‘ticket médio mensal’.
“Está ocorrendo uma contaminação do setor universitário de maior qualidade – instituições públicas estatais e não estatais, como as universidades privadas comunitárias, confessionais, fundações de ensino com finalidade pública –, pois essas práticas e comportamentos, antes alheios a tais instituições, passam agora a fazer parte do seu repertório de administração”, alerta o sociólogo Wilson Mesquita de Almeida, professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas (CECS) da Universidade Federal do ABC (UFABC), e pesquisador das áreas de Educação Superior e Sistema de Educação no Brasil.
De cada quatro estudantes, três estão em uma IES privada
A seus investidores, e tomando por base dados oficiais, estes grandes grupos vendem o mercado brasileiro de ensino superior como o quinto maior do mundo, o primeiro na América Latina, e com muito potencial para crescer, não apenas em função de uma demanda abundante por ensino de preço baixo e qualidade idem, mas também em função de regras convenientes e financiamentos generosos. Os números são verdadeiros.
Conforme os dados do Censo da Educação Superior 2016, divulgados em agosto do ano passado, a cada quatro estudantes de graduação, três estão em uma instituição privada. Dos 8 milhões de alunos matriculados em cursos de graduação, 6 milhões estão na rede privada, sendo 1,5 milhão deles concentrados nos dois maiores grupos com fins lucrativos estabelecidos no Brasil. Tomados apenas os ingressos ocorridos em 2016, dos quase 3 milhões de alunos que entraram em cursos de graduação, 82,3% o fizeram em instituições privadas. E o Brasil segue promissor: os números da Educação na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) referentes a 2016 mostram que apenas 15,3% da população com 25 anos ou mais de idade possui curso superior completo. Entre os jovens com 18 a 24 anos de idade, 18,5% estão na faculdade, apesar de a meta do Plano Nacional de Educação seja alcançar 33% até 2024.
“As instituições privadas lucrativas fazem processos seletivos pouco consistentes, pois, como empresas, precisam do ‘aluno-cliente’. Apesar do avanço em termos de inclusão de segmentos de mais baixa renda, a parcela maior de estudantes mais pobres, trabalhadores, vindos de escolas públicas e com maior idade é a que constitui a demanda dessas instituições, principalmente no período noturno ou em cursos não presenciais. Esses estudantes, que já possuem uma formação deficiente na educação básica, é que estão confrontados com essa nova configuração da educação superior como ativo, o que acaba por aprofundar ainda mais o fosso social. A venda de um diploma desvalorizado, com efeito reduzido no mercado de trabalho, é uma das faces mais perversas desse processo”, aponta Mesquita de Almeida.
Flexibilização no EaD para agradar o mercado
Em um cenário no qual a baixa taxa de escolaridade é apontada internacionalmente, o governo precisa bater metas e jovens egressos principalmente das classes C e D, que seguem representativos no contingente que permanece fora da educação superior, almejam o diploma, os grandes grupos identificaram oportunidades de abocanhar fatias cada vez maiores. A combinação de dois mecanismos – incentivos governamentais e programas de Educação a Distância (EaD) – acelerou o processo.
Com o freio nos incentivos públicos decorrente do arrocho promovido nas contas, foi na EaD que o governo promoveu uma série de alterações legais no ano passado, que já valem para 2018, e induzem ainda mais a expansão das duas últimas décadas. A flexibilização na regulação da EaD é uma antiga reivindicação de Instituições de Ensino Superior (IES) privadas, da mesma forma que as mudanças nos instrumentos de avaliação dos cursos, a participação paritária nas comissões de avaliação in loco e as modificações no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade).
Distorção no ensino a distância
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que no ano passado vetou a fusão das duas maiores empresas de ensino superior privado do país, a Kroton Educacional e a Estácio, após entender que o negócio, que resultaria em uma companhia avaliada em mais de R$ 25 bilhões, com 1,5 milhão de alunos e responsável por 46% do mercado de EaD, geraria uma concentração de mercado acima dos parâmetros legais, formulou um estudo sobre a expansão da modalidade a distância no ensino superior. De acordo com os números do Cade, no ano 2000 não havia alunos matriculados na EaD. Em 2001, eles eram 0,18% dos estudantes de cursos de graduação. E, em 2016, o índice saltou para 18,56%: quase 1,5 milhão de matrículas em EaD, ante 6,5 milhões na modalidade presencial. Governo e os grupos privados querem mais. O objetivo, segundo o professor Reginaldo Corrêa de Moraes, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) da Unicamp, é o lucro.
Autor de obras sobre os processos de desenvolvimento e as políticas para o ensino superior em diferentes países, o pesquisador assinala que, apesar de no Brasil a EaD ter objetivos econômicos, essa não é sua finalidade em outras nações. “O objetivo principal original da EaD não é o encurtamento ou barateamento dos cursos, é atender alunos com agendas fora do padrão. É uma modalidade que só faz sentido se tiver escala, porque planejá-la e montá-la dá trabalho e custa caro. Mas, no Brasil, de forma predominante, a última coisa na qual se tem pensado é a qualidade. A ideia é vender barato uma credencial: o diploma. Há um sério problema na forma como estamos massificando o ensino, com programas absolutamente dirigidos pelo investimento privado”.
Ao contrário do que de forma recorrente uma parte do mercado apregoa, o professor garante que o modelo é completamente diferente do que existe, por exemplo, nos Estados Unidos. “Aqui há expansão das privadas com fins lucrativos. É um modelo quase que exclusivo do Brasil, com regulamentação frágil e, dependendo da conjuntura, com grandes chances de se tornar uma regulamentação fantasma. No modelo norte-americano o mercado é dominado por instituições públicas. E as privadas, em sua maior parte, são sem fins lucrativos. Lá, assim como no Japão, os programas de estímulo estatal são muito fortes, mas direcionados a instituições públicas ou privadas sem fins lucrativos e combinados a uma regulação extrema”.
Grandes grupos comemoram possibilidades
Entre as mudanças legais, ganha destaque a permissão de credenciamento de instituições que ofereçam apenas cursos de graduação e pós-graduação lato sensu a distância. Antes, universidades com cursos EaD precisavam ter também curso presencial. Além disso, a instituição de ensino credenciada poderá firmar parceria com outras pessoas jurídicas para a oferta de cursos a distância, para fins de “funcionamento de polo de EaD”. Já as universidades públicas que desejarem oferecer ensino na modalidade a distância estão automaticamente credenciadas pelo MEC para oferecer vagas pelo prazo de cinco anos a partir da criação do primeiro curso EaD.
A nova legislação também facilita aditamentos pela via do sistema e-MEC e os processos de transferência de mantenedoras; dilata as competências do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e promove a equiparação entre cursos presenciais e a distância, ao estabelecer a aceitação de transferências, aproveitamentos de estudos e certificações totais ou parciais entre as duas modalidades. Por fim, veda a identificação da modalidade de ensino nos diplomas.
De olho no não menos promissor mercado da educação básica, os grandes grupos comemoram a possibilidade de extensão da oferta de educação a distância para os ensinos fundamental e médio, também prevista a partir das modificações recentes da legislação.
Mudanças na legislação
Decreto 9.057 (maio de 2017)
Art. 8. Compete às autoridades dos sistemas de ensino estaduais, municipais e distrital, no âmbito da unidade federativa, autorizar os cursos e o funcionamento de instituições de educação na modalidade a distância nos seguintes níveis e modalidades: I – ensino fundamental, II – ensino médio, III – educação profissional técnica de nível médio; IV – educação de jovens e adultos; e V – educação especial.
Art. 11. § 2º. É permitido o credenciamento de instituição de ensino superior exclusivamente para oferta de cursos de graduação e de pós-graduação lato sensu na modalidade à distância.
Art. 12. As instituições de ensino superior públicas dos sistemas federal, estaduais e distrital ainda não credenciadas para a oferta de cursos superiores na modalidade à distância ficam automaticamente credenciadas, pelo prazo de cinco anos, contado do início da oferta do primeiro curso de graduação nesta modalidade, condicionado à previsão no Plano de Desenvolvimento Institucional.
Art. 14. As instituições de ensino credenciadas para a oferta de educação superior na modalidade à distância que detenham a prerrogativa de autonomia dos sistemas de ensino federal, estaduais e distrital independem de autorização para funcionamento de curso superior na modalidade à distância.
Art. 19. A oferta de cursos superiores na modalidade à distância admitirá regime de parceria entre a instituição de ensino credenciada para educação à distância e outras pessoas jurídicas, preferencialmente em instalações da instituição de ensino, exclusivamente para fins de funcionamento de polo de educação à distância, na forma a ser estabelecida em regulamento e respeitado o limite da capacidade de atendimento de estudantes.
Art. 22. Os atos de credenciamento para a oferta exclusiva de cursos de pós-graduação lato sensu na modalidade à distância concedidos a instituições de ensino superior serão considerados também para fins de oferta de cursos de graduação nesta modalidade, dispensado novo credenciamento ou aditamento.
Portaria Normativa 11 (junho de 2017)
Art. 20. As atividades presenciais dos cursos de pós-graduação lato sensu a distância poderão ser realizadas em locais distintos da sede ou dos polos de EaD.
Art. 21. Para fins desta Portaria, são considerados ambientes profissionais: empresas públicas ou privadas, indústrias, estabelecimentos comerciais ou de serviços, agências públicas e organismos governamentais, destinados a integrarem os processos formativos de cursos superiores à distância, como a realização de atividades presenciais ou estágios supervisionados, com justificada relevância descrita no PPC.
Art. 48. A oferta de cursos superiores à distância admitirá regime de parceria entre a IES credenciada para educação à distância e outras pessoas jurídicas, preferencialmente em instalações da instituição de ensino, exclusivamente para fins de funcionamento de polo de EaD, respeitado o limite da capacidade de atendimento de estudantes.
Decreto 9.235 (dezembro de 2017)
Art. 18. § 2º. É permitido o credenciamento de IES para oferta de cursos na modalidade presencial, ou na modalidade a distância, ou em ambas as modalidades.
Art. 35. A alteração da mantença de IES será comunicada ao Ministério da Educação, no prazo de sessenta dias, contado da data de assinatura do instrumento jurídico que formaliza a transferência.
Art. 98. Os cursos à distância poderão aceitar transferência, aproveitamento de estudos e certificações totais ou parciais realizadas ou obtidas pelos estudantes em cursos presenciais, da mesma forma que os cursos presenciais em relação aos cursos à distância, conforme legislação.
Art. 100. É vedada a identificação da modalidade de ensino na emissão e no registro de diplomas.
Por Flávia Bemfica do Extra Classe