Pedro Paulo Zahluth Bastos, André Luiz Passos Santos, Ricardo Knudsen e Henrique Sá Earp*
Um dos principais argumentos – senão o principal – a favor da reforma do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) proposta pelo governo Jair Bolsonaro é que ela, supostamente, acaba com o custo fiscal e a regressividade distributiva da aposentadoria por tempo de contribuição. O argumento oficial é que os trabalhadores com maiores renda e estabilidade de emprego podem se aposentar mais cedo e que, por receberem a aposentadoria por mais tempo, são privilegiados que oneram o sistema público de aposentadoria de um modo injusto. Esta modalidade de aposentadoria seria regressiva se comparada com a aposentadoria por idade mínima, que atende principalmente trabalhadores com menores renda e estabilidade de emprego.
Esta nota técnica defende que o argumento oficial é, simplesmente, falso, porque omite a redução do valor da aposentadoria por tempo de contribuição (ATC) pelo desconto do Fator Previdenciário (FP). O Fator foi criado em 1999 não para proibir, mas exatamente para punir a aposentadoria por tempo de contribuição e induzir os contribuintes a se aposentarem com a idade mínima ou até mais tarde. A idade mínima exigida nas aposentadorias por idade (AI) é, nas regras atuais, de 60 anos para mulheres e 65 anos para homens. A aposentadoria por idade atende principalmente trabalhadores que, com menores renda e estabilidade de emprego, tem menor capacidade contributiva do que os supostos “privilegiados” da ATC.
O problema é que o fim da aposentadoria por tempo de contribuição pela reforma em discussão no Senado Federal não apenas não vai acabar com privilégios, que não existem. Também vai aumentar a regressividade distributiva do sistema público de aposentadoria (RGPS). Ou seja, uma reforma que promete atacar privilégios vai fazer exatamente o contrário com o fim da ATC e a imposição de uma idade mínima para todas as aposentadorias: vai aumentar a regressividade distributiva e, inclusive, a pobreza. O fim da ATC, tomado isoladamente, também piora e não melhora o equilíbrio financeiro do sistema, de novo ao contrário dos que defendem este ponto da reforma da previdência. Isso ocorre porque, devido ao FP, por exemplo, a aposentadoria de uma mulher/homem aos 55 anos custa menos para o INSS do que aos 60/65 anos.
Para comprovar o ponto, vamos explicar o objetivo da criação do Fator Previdenciário e seus efeitos. Em seguida, vamos apontar o erro de simulações feitas para defender o fim da ATC no debate recente sobre a reforma da previdência e apresentar simulações corretas.
Por que o Fator Previdenciário foi criado pelos parlamentares em 1999?
Os defensores do fim da ATC parecem desconhecer o trabalho dos parlamentares que votaram pela criação do Fator Previdenciário (FP) depois da Emenda Constitucional n. 20/1998. A Lei 9.876/99 que criou o FP complementou e regulou a substituição, pela EC nº 20, da aposentadoria “por tempo de serviço” pela aposentadoria “por tempo de contribuição”.
O FP desconta o valor da aposentadoria por tempo de contribuição que não alcança a soma 86/96 (86 anos para mulheres e 96 para homens). O FP varia diretamente com a idade e o tempo de contribuição, e inversamente à expectativa de sobrevida. O desconto aumenta anualmente de acordo com a expectativa de vida dos brasileiros. Quanto mais novo o aposentado e quanto maior a expectativa de vida, ou quanto maior a expectativa de sobrevida depois do início da ATC, maior é o desconto.
A fórmula de cálculo do FP (ver anexo) que desconta o valor da ATC tem um objetivo explícito: punir a aposentadoria por tempo de contribuição e induzir os contribuintes a se aposentarem com a idade mínima ou até mais tarde. Para isto, o FP é atualizado anualmente de modo que o aumento do tempo de sobrevida com aposentadoria (com idades menores) seja menos que proporcional que o aumento do desconto. Ou seja, o desconto na aposentadoria aumenta proporcionalmente mais que a expectativa de sobrevida depois do início da ATC.
Assim, quem se aposenta por tempo de contribuição tem uma expectativa de sobrevida depois da aposentadoria maior do que se esperasse para se aposentar com a soma 86/96. Mas também tem um desconto ainda maior na aposentadoria recebida. Deste modo, acaba recebendo uma soma menor do que se esperasse para se aposentar com o valor integral, sem desconto, ao alcançar a soma 86/96. É exatamente para induzir aposentadorias mais velhas e punir aposentadorias mais novas que o FP foi criado, com sucesso.
No exemplo da tabela seguinte que toma 35 anos de contribuição para os dois sexos, o Fator Previdenciário cresce de um valor de 0,553 aos 49 anos de idade até alcançar um valor próximo de 1 aos 65 anos de idade, atingindo valores maiores do que 1 à medida que a idade de aposentadoria aumenta, e a expectativa de sobrevida diminui. Ademais, o FP cresce mais que proporcionalmente que a redução da sobrevida. Assim, o produto da sobrevida pelo FP é função crescente da idade e função decrescente da sobrevida, punindo aposentadorias com maior sobrevida. O valor da aposentadoria é calculado tomando o salário de referência e multiplicando-o pelo Fator Previdenciário.
O Fator é fixo depois da aposentadoria, mas varia de acordo com a idade na qual a aposentadoria se inicia, descontando o benefício antes do alcance de 65 anos e o elevando depois. Logo, o FP pune a ATC que ocorre sem atingir a regra 86/96 progressiva.
Ao punir a ATC com idades menores, o FP não apenas diminui o custo financeiro da ATC para o sistema, isto é, não somente economiza recursos do INSS. Além disso, o desconto do FP aumenta a contribuição financeira da ATC para o equilíbrio financeiro do sistema, pois a soma das contribuições feitas ao longo da vida de trabalho tende a ser, atuarialmente nas regras atuais, maior do que as aposentadorias recebidas quanto mais novo for o aposentado, como veremos.
Em geral, a aposentadoria por tempo de contribuição com desconto do fator previdenciário gera mais recursos líquidos para o sistema, ou seja, resulta atuarialmente em receitas maiores que despesas se comparada com a aposentadoria que cumpre a idade mínima. Usando este critério (que é típico das críticas enganosas da ATC), se fosse possível falar em “privilégios” com a aposentadoria no INSS (e não é possível), eles seriam exatamente dos aposentados por idade mínima, e não dos aposentados por tempo de contribuição.
Ou seja, a ATC não apenas é sustentável financeiramente, como contribui para a sustentabilidade financeira do RGPS. Assim, acabar com a ATC, isoladamente, não melhora e sim piora o equilíbrio atuarial do sistema, e não melhora e sim piora a progressividade distributiva do sistema, ao contrário daquilo que é afirmado por quem desconhece ou pelo menos aparenta desconhecer o assunto.
As simulações atuariais
O conceito fundamental para entender as simulações é o de justiça atuarial. Com base na ciência atuarial, ele é usado ao comparar a soma de contribuições previdenciárias com a soma das aposentadorias recebidas, evidentemente depois de trazê-las a valor presente (dada uma taxa de desconto). Quando, a valor presente, a soma de contribuições é diferente da soma de aposentadorias recebidas, há injustiça atuarial. Se as contribuições forem maiores, o aposentado contribui para o equilíbrio atuarial do sistema, e vice-versa.
O ponto fundamental é que o Fator Previdenciário tende a gerar um desconto maior do que o atuarialmente justo, ou seja, torna a soma de contribuições maior que a soma de aposentadorias recebidas. Se o desconto da aposentadoria é maior do que o atuarialmente justo, as ATC são progressivas do ponto de vista da distribuição de renda entre aqueles que têm mais capacidade contributiva (mais renda e estabilidade de emprego) e aqueles que têm menos renda e estabilidade de emprego. Com isso, as ATC tendem a contribuir para sustentabilidade financeira do Regime Geral de Previdência. Isso é conhecido na bibliografia especializada que faz simulações atuariais informadas.
*Os autores são, respectivamente: Professor Associado do Instituto de Economia e pesquisador do Cecon-UNICAMP, ex-professor visitante na UC Berkeley; Mestre em História Econômica (USP), ex-analista bancário aposentado; Doutor em Química (USP), especialista em Design de Experimentos e Proprietário da KnudZen Consulting (Itália); Professor Doutor do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica da Unicamp, Mestre em Física (University of Cambridge) e PhD em Matemática (Imperial College London).
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