Alimentos encarecidos garantem lucro de fundos de investimentos internacionais e populações ficam sem itens essenciais
A fome no mundo aumentou pelo terceiro ano consecutivo. Em 2017, 821 milhões de pessoas não ingeriram a quantidade de calorias mínimas indicadas para atividades diárias. As informações foram apresentadas pelo relatório “A segurança alimentar e a nutrição no mundo”, da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado no início do mês.
Entre os fatores responsáveis pelo aprofundamento dessa mazela social, estão crises econômicas, conflitos armados e eventos climáticos como intensos períodos de secas, que impedem colheitas de produtos que estão na base da cadeia alimentar.
O Atlas do Agronegócio 2018, organizado pelas fundações alemãs Heinrich Böll e Rosa Luxemburgo, apresenta ainda outro elemento: a especulação financeira nas bolsas de valores aumenta o preço das commodities agrícolas, mercadorias produzidas em larga escala, como por exemplo, o trigo, milho, cacau, café e açúcar, entre outros.
As negociações das commodities são feitas por meio dos chamados contratos futuros, transações padronizadas entre produtores e fundos de investimentos para controlar os riscos que envolvem a produção. No caso das commodities agrícolas, não se pode prever se o preço será alto devido à escassez de produtos ou se será baixo devido à abundância, fatores determinados por elementos externos como o clima.
Dessa forma, tanto o produtor quanto o comprador acordam um preço para a produção em uma determinada data futura e assim eliminam os riscos de uma possível oscilação na produção.
Como funciona a especulação?
Após o fechamento dos contratos futuros, também conhecidos como derivativos, se inicia o processo de especulação financeira por parte do comprador. Este adquire o ativo com a intenção de revendê-lo nas Bolsas de Valores, ou seja, realizar uma venda futura com lucro ainda maior, sob condições de incerteza.
“Toda essa crise de aumento dos preços está muito ligada à amplificação das negociações especulativas desses contratos. Quando se fecha uma coisa em um determinado momento, é um preço. Quando acontece [na etapa final da produção], é outro. Nesse meio tempo, há a especulação para comprar e vender por mais ou por menos. No caso, quem está querendo vender, evidentemente, quer vender na alta”, explica Marcus Oliveira, economista e ativista ambiental.
“Muita gente que atua nesse mercado não está interessado no produto. Não quer o café, por exemplo. Quer saber quanto será a safra e o volume para poder comprar isso e valorizar o papel que está comprando. Não é o café em si, complementa o especialista.
Ao passo que os especuladores continuam a fazer apostas intensas, as commodities agrícolas se valorizam e o preço mundial dos alimentos é inflado. Por exemplo: se o preço da commodity milho aumenta, os preços da pipoca ou da pamonha, também passarão por uma elevação.
Na opinião de Oliveira, a especulação sobre as commodities agrícolas afeta diretamente o combate à fome. “O alimento é mais sério porque há um impacto no preço do alimento. Isso interfere na chegada do alimento ao prato de quem necessita”, ressalta.
“Ninguém deveria passar fome porque não faltam alimentos, se tem um excesso. Mas porque, então, uma em cada oito pessoas passam fome? Porque se tem um processo de distribuição errada, em primeiro lugar, uma disfuncionalidade, e em segundo porque o aumento dos preços também interfere e impede a pessoa mais simples de ter acesso ao consumo.”
Exemplo real
Em 2010, o fundo de investimentos inglês Armajaro Trading, comprou uma quantidade maciça de cacau e provocou um aumento recorde dos preços. Foram 240 mil toneladas, quantidade equivalente a 7% da produção mundial de cacau e 15% dos estoques globais. Matéria-prima suficiente para 5,3 bilhões de barras de chocolate.
Com forte poder de influência no mercado do cacau, a Armajaro pôde vender o produto a um preço maior. A partir do primeiro contrato de futuro sobre o preço, outros traders (negociadores) passaram a especular sobre o derivativo, o “papel criado”. A partir dessa primeira negociação, novos contratos foram gerados. Neste caso, os preços das sementes subiram ao maior valor desde 1977 na Europa, impactando também o preço dos chocolates no mercado.
Marcus Oliveira comenta ainda que nessa dinâmica de especulação das commodities agrícolas, o pequeno agricultor é muito prejudicado, já que o lucro é exclusivo dos especuladores. “O produtor é refém do mercado. Quem faz a gestão do mercado, determina preços. Quem está produzindo, com muita dificuldade, acaba refém disso, dos grandes conglomerados e dos lobbies”, reforça o economista.
Flexibilização gera concentração
O Atlas do Agronegócio 2018 destaca que regras que anteriormente restringiam as especulações financeiras excessivas sobre os produtos agrícolas foram flexibilizadas desde o início da década de 1990, pela Comissão de Negociação de Mercadorias de Futuro dos Estados Unidos. Como resultado desse processo, as potências financeiras passaram a moldar crescentemente o sistema alimentar global.
A crise financeira global de 2008 incentivou o crescimento do investimento em matérias primas agrícolas. Entre 2006 e início de 2011, de acordo com o Atlas, o total de ativos dos especuladores financeiros nos mercados de commodities agrícolas quase dobrou de US$ 65 bilhões para US$ 126 bilhões.
O estudo traz ainda outro dado: no mercado de futuro de trigo dos Estados Unidos, por exemplo, os especuladores financeiros representavam 12% do comércio em meados da década de 1990, mas, em 2011, a participação era de 61%. Estima-se que, atualmente, a participação esteja em torno de 70%.
Os fundos de investimentos controlam bilhões de dólares de ativos agrícolas. Apenas o DB Agriculture Fund, lançado pelo Deutsche Bank, administra mais de US$ 700 milhões em ativos que incluem milho, soja, trigo, café e açúcar.
A BlackRock, uma das maiores empresas de investimento do mundo, que possui ações da Bayer-Monsanto e da Syngenta, empresas transnacionais que dominam as vendas de agrotóxicos e pesticidas no mundo, assim como a comercialização de sementes, estabeleceu em 2007 um Fundo de Índice de Agricultura que investe em ativos como futuros de commodities e terras agrícolas. O fundo vale mais de US$230 milhões.
Outras corporações, como a Cargill, Bunge e ADM, também possuem lucros bilionários.
Políticas de combate à fome
Daniel Balaban, diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU, também critica a especulação financeira sobre a alimentação mundial.
“Quando se utiliza [a alimentação] como mercadoria, para especular, para ter um maior lucro, não se preocupa em utilizar esses alimentos para o consumo dos mais necessitados, que são os que tem menos força nesse processo, não possuem dinheiro para comprar”, enfatiza Balaban.
Ele acrescenta que o crescimento de pessoas em situação de insegurança alimentar nutricional no mundo é extremamente alarmante e afasta o mundo da meta de acabar com a fome até 2030.
Além da seca e das alterações climáticas que influenciam na produção alimentar, a ONU cita os conflitos armados como decisivos no aumento exponencial da fome.
“Só o Programa Mundial de Alimentos tem cinco casos máximos que chamamos de L3, nível três, em que temos que entregar e fazer com que cheguem os alimentos nas regiões. O Iêmen é muito preocupante, a Síria, o Iraque, o Sudão do Sul, o Afeganistão. São regiões onde os conflitos persistem e nesse cenário, as pessoas não têm capacidade de produzir e fica muito mais difícil o acesso dessas populações aos alimentos”, afirma o coordenador do PMA.
Balaban também comenta o caso brasileiro. “O Brasil chegou a menos de 3 milhões de pessoas [com fome] e agora já está em 5 milhões em pessoas com insegurança alimentar. O aumento acontece devido a crise econômica que o país vem enfrentando, e a diminuição, principalmente, de alguns investimentos necessários para os pequenos agricultores familiares, os mais atingidos, e principalmente de políticas sociais.”
Desperdício e distribuição
Outra questão trabalhada pela FAO, braço da ONU para a alimentação e a agricultura, e pelo PMA, é tornar evidente que não falta produção de comida no mundo para todos os seus habitantes, mas o grande desperdício de comida, além dos fatores citados, dificulta sua distribuição.
O especialista é enfático ao opinar que, caso fosse prioridade dos países, o problema da fome seria resolvido mas a falta de interesse político impede que isso aconteça.
“Será que somos incapazes de acabar com a fome no mundo ou há uma falta de interesse político em atingir essa meta?”, questiona Balaban. “O mundo gasta anualmente 1 trilhão e 500 bilhões de dólares com gastos militares. Os recursos que vão para políticas sociais, para acabar com a fome, não chegam a 2% disso.”
Brasil de Fato