Por Gabriel Grabowski

Na Conferência Regional de Educação Superior na América Latina e Caribe (CRES2018), realizada em junho na cidade de Córdoba, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos demonstrou como o neoliberalismo assedia as universidades hoje. Afirmou que “estamos passando um ciclo global conservador e reacionário, controlado pelo neoliberalismo, que não é senão o domínio total do capital financeiro” e que, hoje, “parece que o capitalismo venceu seus adversários, é um capitalismo sem medo”.

Por analogia, esta ofensiva neoliberal está presente nas reformas educacionais em curso na educação brasileira, especialmente a partir 2016, alvejando tanto a educação básica como o ensino superior. A BNCC do ensino infantil, do ensino fundamental e a “reforma” do ensino médio visa subordinar ainda mais o ensino médio à lógica neoliberal e ao mercado, criando as competências e habilidades que ele exige.

Assim como a universidade se constitui em alvo desejado pelo regime neoliberal, também a educação básica o é, especialmente o ensino médio e a educação profissional.  Segundo o educador da Universidade de Coimbra, esse assédio neoliberal em torno da educação se dá por três razões: a) sua produção de conhecimento independente e crítica questiona “a ausência de alternativas que o neoliberalismo tenta produzir em nossas cabeças todos os dias; b)  o pensamento neoliberal busca um presente eterno, quer evitar toda tensão entre passado, presente e futuro e, c)  a universidade, bem como toda educação básica ajudam a criar projetos nacionais (obviamente, excludentes dos povos originários) e o neoliberalismo não quer projetos nacionais. A desobrigação de disciplinas como história, geografia, sociologia, filosofia, artes, educação física, língua estrangeira, física, química e biologia na “BNCC do novo ensino médio” evidencia o que interessa à ideologia neoliberal.

Boaventura: “A ideia de que o único valor do conhecimento é o valor de mercado é o que irá matar a universidade. Uma universidade que é ‘sustentável’ porque financia a si mesma é uma universidade insustentável como bem comum, porque se transformou em uma empresa”

Foto: CRES2018/ Divulgação

A atual proposta de BNCC para o ensino médio tem muitos problemas já apontados por especialistas e entidades educacionais. O principal deles, apontado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), é a Lei 13.415/2017 (Reforma do Ensino Médio), sobre a qual a BNCC atuará. Ela fomenta a privatização da educação básica, repassando para o setor privado os currículos flexíveis, especialmente da educação técnica profissional, que deverá ser a mais explorada pelos sistemas e redes de ensino do país. De outro, cria um verdadeiro apartheid socioeducacional, instituindo escolas para ricos e classe média alta – com currículos “à la carte”, em que empresários poderão cobrar por disciplinas que estão fora das 1.800 horas obrigatórias da BNCC –, e escolas para pobres e classe média baixa, estas com currículos limitados às 1.800 horas e com apenas duas disciplinas obrigatórias (português e matemática).

Outra crítica contundente emerge de Conselheiros dos próprio Conselho Nacional de Educação (CNE). O ex-coordenador da Comissão da BNCC, conselheiro Cesar Callegari, afirma que a proposta elaborada pelo MEC evidencia os problemas contidos na referida Lei, aprofunda-os e não os supera, destacando a separação do ensino médio do conjunto da educação básica. Alerta ainda que ao abandonar “a atenção aos domínios conceituais próprios das diferentes disciplinas, a proposta do MEC não só dificulta uma visão interdisciplinar e contextualizada do mundo, mas pode levar à formação de uma geração de jovens pouco qualificados, acríticos, manipuláveis, incapazes de criar e condenados aos trabalhos mais simples e entediantes, cada vez mais raros e mal-remunerados. É isso que se quer para o país?”

Já a professora Monica Ribeiro da Silva (UFPR) – integrante do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio – caracteriza esse novo ensino médio como “líquido”.  É “líquido”, segundo a pesquisadora, porque mergulha no mais profundo abismo a juventude brasileira da escola pública e afunda toda e qualquer possibilidade de uma vida digna para esses jovens, conseguida por meio de uma formação escolar densa e crítica, de uma preparação séria para o mundo do trabalho ou para o prosseguimento dos estudos.

Entre as várias críticas, a pesquisadora da UFPR destaca que no itinerário “formação técnica e profissional” poderá ser ofertado por meio de parceria com o setor privado e o sistema de ensino se servirá de recurso público do Fundeb para isso, além de não haver exigência de professor formado, pois aqueles que atestarem notório saber em qualquer habilitação técnica poderão receber certificado para o exercício da docência. Se o estudante fizer alguns cursos a distância e comprovar na escola alguns saberes práticos poderá ser dispensado de fazer várias disciplinas, esvaziando ainda mais o seu aprendizado e demonstrando, com isso, a ainda maior “liquidez” desse “novo” ensino médio.

Callegari: “proposta do MEC pode levar à formação de uma geração de jovens pouco qualificados, acríticos, manipuláveis, incapazes de criar e condenados aos trabalhos mais simples e entediantes”

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

As críticas estão centradas na Lei 13.415/2017, que alterou a LDB e que “flexibilizou, reduziu e empobreceu o currículo do ensino médio. A consequência imediata será a oferta de uma formação fragmentada, parcial, individual, instrumental e profissionalizante”, conforme já analisado e demonstrado por nós em artigo anterior.

Enquanto o Ministério da Educação e o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) convocam para um “Dia D” de debate nas escolas sobre a BNCC do ensino médio, previsto para 2 de agosto, a CNTE orienta as entidades afiliadas a promoverem intenso calendário de mobilização e denúncia para discutir as reais consequênciasdas medidas propostas pelo governo com o chamamento: “Diga Não à BNCC do Ensino Médio e pela revogação da Lei n°13.415”. 

A finalidade principal da educação básica é preparar os estudantes para a vida e não somente para atender às exigências do mercado. A educação é de responsabilidade não apenas do Estado e dos educadores, mas, também, do conjunto da sociedade. Neste momento de mudanças tão significativas que impactarão na natureza e nos conteúdos de formação das atuais e futuras gerações de estudantes, cada professor e professora, estudante, jovem e cidadão brasileiro precisa apropriar-se das mudanças em curso, debatê-las e posicionar-se sobre que educação quer para seus filhos e para nosso país. A participação efetiva de todos evitará reformas precipitadas e aceleradas por um governo prestes encerrar seu ciclo antidemocrático.

“O erro, na verdade, não é ter um certo ponto de vista, mas absolutizá-lo e desconhecer que, mesmo do acerto de seu ponto de vista é possível que a razão ética nem sempre esteja com ele”. Com esse alerta de Paulo Freire, alertamos que um dia “D” é absurdamente insuficiente para uma escuta qualificada da comunidade educacional. É necessário, no mínimo, um ano de apropriação, estudos e debates, em todas as escolas do país, para viabilizar democraticamente as contribuições dos estudantes, educadores, pais e segmentos da sociedade. Apenas um dia, é farsa!

Do jornal Extra Classe, do Sinpro/RS