A votação da Lei da Mordaça (PL 7180/14), analisada em comissão especial da Câmara dos Deputados, foi cancelada nesta quarta-feira (04). O projeto, que tem como relator o cantor católico e deputado federal Flavinho (PSC-SP), é alvo de críticas por parte de professores e entidades de direitos humanos por infringir a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei 9.394/1996), estabelecida na Constituição Federal.

Por Iberê Lopes*

Uma das medidas previstas no texto estabelece que cada sala de aula terá um cartaz com deveres do professor. Dos seis pontos norteadores da conduta dos professores, um deles veda a “cooptação” de alunos para “corrente política, ideológica ou partidária”.

Em nota publicada nesta terça-feira (3), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) denuncia que os defensores da proposta que cria o programa Escola sem Partido tentam criminalizar a atividade docente por cometerem supostos abusos em sua liberdade de ensinar.

“Sugerem um rol de deveres para os professores, a ser aplicado em regime de censura, punição e perseguição aos/às professores/as no ambiente escolar, coisa que não aconteceu nem mesmo na Ditadura Civil-Militar brasileira”, afirma a CNTE.

O projeto altera, ainda, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) afastando qualquer possibilidade de oferta de disciplinas com conteúdo que, segundo a bancada evangélica e católica na Câmara, seria doutrinador político e sexual ao abordar questões de “gênero” ou “orientação sexual” em escolas de todo o país.

“Há muitos anos, tem sido jogado para debaixo do tapete e acobertado sob o manto da liberdade de expressão e da liberdade de cátedra dos doutrinadores travestidos de docentes”, afirmou o deputado Flavinho em entrevista à Agência Brasil.

Se aprovada mesmo diante de flagrante ataque à liberdade de expressão e inconstitucionalidade, a proposta pode impactar na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que orienta a elaboração dos currículos das escolas públicas e privadas. A BNCC está prevista no Plano Nacional de Educação (PNE – Lei 13.005/14) e na LDB, estabelecendo como serão despertas as habilidades dos alunos em cada ano da educação básica.

Segundo informações da CNTE, somente no ensino público, mais de 4,5 milhões de professores, pedagogos/especialistas e funcionários administrativos das escolas do país poderão ver cerceado o seu direito de lecionar com liberdade e para a diversidade.

Contrário a medida, o presidente da União Nacional LGBT, Andrey Lemos, considera fundamental uma educação inclusiva, “que promova o respeito, a valorização da diversidade, que desconstrua as culturas de ódio, de estupro, de machismo, racismo, sexismo e lgbtfobia. Há importância de que a escola cumpra o seu papel para uma cultura de paz”.

Na avaliação de Lemos, a Lei da Mordaça reflete um avanço agressivo dos setores mais conservadores da sociedade, que persegue minorias, ataca a laicidade do Estado e os princípios democráticos brasileiros.

Com este mesmo entendimento, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu cautelarmente, em 2017, a aplicação de lei similar à Escola Sem Partido no Estado de Alagoas. O ministro José Roberto Barroso aponta uma lista de inconstitucionalidades que caberia à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ) se manifestar previamente sobre a constitucionalidade do projeto de lei.

A ação que impediu a aplicação da lei promulgada pela Assembleia Legislativa alagoana foi de iniciativa da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (CONTEE). A entidade alegou, à época, que a lei fere a Constituição ao legislar sobre educação.

Enquanto os parlamentares da comissão especial da Câmara não votam a matéria, casos semelhantes ao de Alagoas surgem em todo o país. Vereadores e deputados estaduais ligados a movimentos religiosos em defesa da moral e dos bons costumes tentam impedir que ocorram debates sobre diversidade política, sexual, de raça e/ou religião no ambiente escolar.

Recentemente, a Associação dos Professores do Paraná (APP) precisou protocolar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Tribunal de Justiça do Estado contra a alteração da Lei Orgânica do Município de Foz do Iguaçu que nominava as discussões propostas pelos educadores em sala de aula como “ideologia de gênero”. A lei foi aprovada pela Câmara de Vereadores e promulgada pelo presidente do Legislativo, o vereador Rogério Quadros (PTB).

Representando o Partido Comunista do Brasil, a presidente da legenda e deputada federal, Luciana Santos (PE), entrou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo contra a proposta de modificação da Lei em Foz do Iguaçu.

No final de junho, o partido propôs a ADPF (uma espécie de controle constitucional) onde questiona a decisão da Câmara Municipal de Foz do Iguaçu (PR). O texto aprovado pelos vereadores exclui da política municipal de ensino matérias que incluam os termos gênero e orientação sexual. A ADPF número 526, do PCdoB contra a Câmara de Foz do Iguaçu tem como relator o ministro Dias Toffoli.

A norma impugnada contêm o seguinte teor: § 5° Ficam vedadas em todas as dependências das instituições da rede municipal de ensino a adoção, divulgação, realização ou organização de políticas de ensino, currículo escolar, disciplina obrigatória, complementar ou facultativa, ou ainda atividades culturais que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo “gênero” ou “orientação sexual”.

De acordo com o advogado Oliver Oliveira Sousa, que assina a ADPF com pedido de liminar para suspensão do ato, uma escola sem liberdade “é marca característica de regimes autoritários, de uma sociedade que se assenta sob um sistema de desigualdade e de exclusão e que não permite a educação como prática transformadora que consolide ideais democráticos de igualdade e valorização das diferenças”.

Oliveira acrescenta que a escola deve ser instrumento para o exercício da cidadania e formação de meninas e meninos. “Silenciar a questão de gênero na escola é reproduzir as desigualdades, é ignorar a diversidade e a possibilidade de uma vida feliz com nossas próprias escolhas no campo sexual e reprodutivo”, afirma.

Em Pernambuco, estado da presidente do PCdoB, Luciana Santos, a Câmara Municipal do Cabo de Santo Agostinho aprovou, em novembro de 2017, um projeto proibindo atividades pedagógicas e a oferta de disciplinas ligadas à “ideologia de gênero” nas escolas públicas e particulares do município.

A lei que entrou em vigor no mesmo dia da aprovação determina a proibição de “toda e qualquer disciplina que tente orientar a sexualidade de alunos ou que tente extinguir o gênero masculino ou gênero feminino”.

Para barrar a chamada “ideologia de gênero” nas escolas, em dezembro do mesmo ano, a Câmara de Vereadores de Sobral, no Ceará, aprovou projeto com o igual teor. O texto da lei 2154/2017 foi vetado pelo prefeito Ivo Gomes (PDT). Mesmo diante de protestos contra a iniciativa, o resultado da votação pela continuidade do veto foi apertado (10 votos contra 9).

E a onda de conservadorismo avança nas cidades brasileiras, ameaçando as liberdades coletivas e individuais. Por unanimidade, 16 vereadores de Campina Grande (Paraíba) aprovaram, em junho deste ano, um projeto de lei que impede a discussão de qualquer tipo de conteúdo com “ideologia de gênero” nas escolas da cidade. De autoria do vereador Pimentel Filho (MDB), o texto aguarda a sanção ou veto do prefeito Romero Rodrigues (PSDB).

Por decisão da maioria absoluta de seus membros, o STF pode deferir o pedido do PCdoB que solicita medida liminar na arguição de descumprimento de preceito fundamental, com base na Lei 9.882/99. Na Câmara dos Deputados, em Brasília, o colegiado que estuda o relatório do deputado Flavinho não marcou nova data para votar o parecer da Lei da Mordaça (Escola Sem Partido).

História de resistência consciente na Bahia

A Câmara de Vereadores de Porto Seguro (BA) convocou audiência pública no mês passado para discutir o projeto de autoria do vereador “Bolinha” (MDB), que proíbe a inserção de conteúdos de “ideologia de gênero” nas escolas da rede municipal. A decisão de aprofundamento do debate foi comemorada pelos grupos contrários ao projeto, devido à maioria evangélica na composição do legislativo local.

O relato de Gabriel Nascimento dos Santos, professor titular de Língua Inglesa na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), em entrevista concedida a uma rádio local demonstra o quanto é preocupante este cenário de crescente retrocesso nos direitos dos cidadãos de Porto Seguro e dos brasileiros.

Questionado pelo apresentador sobre o projeto de lei do vereador “Bolinha”, ele disse que o texto pretendia, entre outras coisas, impedir a escola de ajudar os jovens na prevenção de DSTs (doenças sexualmente transmissíveis), “e pedi a cada pai e mãe para procurar o serviço de apoio a DSTs de Porto Seguro”.

“Nesse momento fui interrompido pelo apresentador porque ele queria mesmo saber sobre a tal ‘ideologia de gênero’. E eu respondi: isso é o que eles chamam de ideologia de gênero. Ele não se contentou. Perguntou sobre o negócio de homem ser mulher. Não me fiz de rogado. Eu disse que a escola deve respeitar as escolhas individuais de cada sujeito e ajudar eles a serem felizes”, contou Gabriel no dia 14 de junho através de seu perfil numa rede social.

O jovem professor, de 27 anos, salientou que “não é papel dela (da escola) intervir na felicidade dos sujeitos, mas no seu sofrimento sim”. Gabriel Nascimento dos Santos concluiu, silenciando o radialista, que “aquele projeto não era contra a ideologia de gênero, mas para amordaçar e impedir a escola de continuar ajudando os jovens”.

Educação para evitar o desastre da violência contra LGBTs

Em janeiro de 2018, um levantamento realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), mostrou que no ano passado uma pessoa foi vítima de crimes motivados por homofobia a cada 19 horas. Foram mortos 445 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs) em 2017. Os dados anuais começaram a ser apresentados pela entidade há 38 anos.

Entre os números assustadores está o caso da travesti Dandara dos Santos, que foi torturada e assassinada em Fortaleza (CE), causando indignação e protestos após a publicação de um vídeo da violência nas redes sociais. Em Salvador (BA), neste ano, o homem trans Thadeu Nascimento (Têu), de 24 anos, foi encontrado morto no bairro de São Cristovão.

Assassinada no Morro do 18, em Água Santa, na zona norte do Rio de Janeiro (RJ), a estudante Matheusa Passarelli, de 21 anos, que tinha identidade de gênero não binária foi queimada por integrantes de uma facção criminosa da região.

Os casos acima revelam a necessidade de uma educação inclusiva, diversa e plural que possa evitar exemplos da avassaladora realidade de violência homofóbica no Brasil.

O que diz o cartaz proposto pela Lei da Mordaça

Pela proposta, deverá ser afixado em todas as escolas públicas e privadas do país um cartaz com o seguinte conteúdo, que seriam os deveres do professor:

1. Não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para nenhuma corrente política, ideológica ou partidária;

2. Não favorecerá, nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas;

3. Não fará propaganda político-partidária em sala de aula, nem incitará os alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;

4. Ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito;

5. Respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções;

6. Não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.

*Especial para o Portal Vermelho