Dieese: “Custo do desmonte dos sindicatos será alto para a sociedade”
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Dieese: “Custo do desmonte dos sindicatos será alto para a sociedade”

 

“A Reforma Trabalhista quer quebrar os sindicatos”, enfatizou o sociólogo Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em entrevista ao Portal Sul21, ao avaliar as graves consequências Reforma Trabalhista sobre as entidades representativas da classe trabalhadora.

“Nós temos uma mudança de organização do patrimônio das empresas. Cada vez mais, as médias e grandes corporações estão mudando de propriedade. Isso significa que o dono tradicional familiar transfere a propriedade para fundos de investimento que têm outra lógica de organização”, avaliou Clemente.

Ele também indicou o efeito nocivo com o avanço das privatizações. “O capitalista nacional, que estrutura a base do sistema produtivo do país, não é mais nacional. Os novos proprietários dessas empresas querem segurança e liberdade para agir do jeito que bem entenderem. Os interesses que estão por trás destes negócios e que apoiaram o impeachment da presidenta Dilma são os mesmos interesses fazem guerra no Oriente Médio, matam, destroem países, acabam com a democracia, fazem o que for necessário. Não há negócios no mundo como os que estão sendo feitos no Brasil. É muito sério e grave o que está acontecendo”, afirma o sociólogo.

Acompanhe íntegra da entrevista:

Sul21: Qual balanço é possível fazer da situação do trabalho no Brasil pós-Reforma Trabalhista aprovada pelo governo Temer? Já é possível medir impactos da mesma sobre os direitos dos trabalhadores e sobre a vida dos sindicatos?

Clemente Ganz: A reforma impacta o acesso dos trabalhadores à justiça, a formação das convenções e acordos coletivos e a vida sindical. Tudo isso, em conjunto, tem um impacto sobre o sistema de proteção estabelecido pelo direito trabalhista. Tudo está sendo impactado simultaneamente. É muito difícil isolar o que está afetando o quê. Ao mesmo tempo, temos uma grave recessão econômica que tem um brutal efeito sobre o mercado de trabalho e sobre o desemprego. Paralelamente a tudo isso, temos mudanças muito profundas na estrutura produtiva.

O que é claro é que a mudança na legislação trabalhista visa criar uma condição de máxima flexibilidade para que o capital se reorganize no processo de mudança profunda que ele está realizando. Ele quer ter a máxima segurança jurídica nestas transformações, menor pressão sindical e menor passivo trabalhista. É para isso que a legislação foi alterada.

Ela começa a produzir seus efeitos. Os dados começam a mostrar que houve queda de acesso à Justiça. Os trabalhadores têm menor iniciativa de acessar a Justiça pelos motivos que a nova legislação criou. Além disso, os sindicatos têm observado que os patrões vêm para as negociações com uma pauta trabalhista, do lado do capital, de desmobilização de direitos. Isso tem um efeito importante sobre as negociações coletivas.

Do outro lado, as negociações coletivas passam a absorver essa pauta de desmobilização de direitos e de intransigência patronal. Isso tem travado as negociações. O patrão quer reduzir direitos e não quer financiar os sindicatos por meio da convenção ou do que os trabalhadores decidirem. Os sindicatos, por sua vez, não querem aceitar redução de direitos e querem definir uma regra de financiamento sindical. É uma situação de travamento das negociações.

E os direitos trabalhistas passam a ser desmontados dia após dia. Os dez principais motivos de queixas na Justiça do Trabalho estão ligados a fraudes nas homologações que, agora, podem ser feitas sem a assistência dos sindicatos. Ninguém sabe a quantidade de problemas que está se acumulando nestas homologações. Saberemos um dia? Não sei. Se o trabalhador não entra na Justiça não podemos saber quais fraudes ocorreram. Se a homologação que um trabalhador assinou prevê que ele não pode entrar na Justiça, não temos como saber o que está acontecendo.

Além disso, nas novas contratações que estão sendo feitas, sob o novo regime, começa a aparecer o contrato intermitente, a jornada parcial com prazos determinados já com as novas regras. Os empregadores têm dito que estão se organizando para fazer uso mais intensivo disso. Não fizeram antes porque foi editada uma medida provisória que criou certa insegurança.

Como essa medida provisória caducou, estão se sentindo mais seguros. As assessorias jurídicas deles estão orientando para que não façam as coisas de qualquer jeito para não criar uma animosidade contra a legislação. A orientação é que façam isso gradualmente. Se começarem a fazer coisas muito escandalosas, correm o risco de sofrer algum tipo de intervenção. Na verdade, pelas novas regras, estão autorizados a fazer o que bem quiserem.

Há, de fato, uma estratégia patronal mais cuidadosa para que a maldade seja feita em doses homeopáticas. Mas isso não significa que eles não estão implementando as novas regras. As coisas estão acontecendo e logo vamos começar a sentir os efeitos. Um dos efeitos mais estruturais é a ampliação do subemprego, da subocupação. A tendência é que o desemprego diminua e aumente a subocupação. A taxa de subocupação que o Dieese divulga como desemprego pelo trabalho precário e pelo desalento, e que o IBGE divulga como subocupação, passam a ser taxas fundamentais de serem acompanhadas. A tendência é que as pessoas passem a ter ocupações precárias que não vão ser classificadas como desemprego aberto clássico.

Sul21: Poderia dar alguns exemplos dessas formas de subocupação e de trabalho precário que devem aumentar nos próximos meses?

Clemente Ganz: É um trabalhador, por exemplo, contratado para trabalhar quatro horas por dia. Em valor/hora, ele pode ganhar meio salário mínimo. Isso é uma subocupação porque ele poderia e precisaria trabalhar oito horas para ter uma renda adequada. Como entre não ter nada e ter 450 reais é melhor ter 450 reais é isso que ele vai ter. Temos ainda o caso do trabalhador intermitente que faz uma ficha em dez empresas e fica esperando em casa que alguma delas ligue pra ele. Se ligarem ele vai trabalhar as horas para as quais for chamado e receber por essas horas. Em um mês ele pode ser chamado para 200 horas de trabalho, em outro pode ser para 100 horas e assim por diante. Se não chamarem para nenhuma hora no mês, não receberá nada.

Há também outras formas de ocupação como o trabalhador autônomo, os prestadores de serviço, os PJs que são pessoas jurídicas formalmente constituídas que podem prestar serviços para uma única empresa ou mais de uma. Além de precariedade no trabalho, isso traz fragilidade na Previdência Social por que essas pessoas não contribuem para a Previdência, necessariamente. Além da queda de arrecadação, isso gera um problema futuro para o Estado. Quando essas pessoas ficarem velhas e tiverem problemas, alguém terá que dar algum tipo de assistência a elas. Em última instância será o Estado que terá que dar essa assistência. Os efeitos são múltiplos.

Em função da dimensão da reforma é muito difícil dizer o quanto cada coisa depende do quê e causa o quê. Os números ainda são incipientes. Daqui a um ou dois anos, as pesquisas e os registros administrativos começarão a consolidar os dados. Alguns deles já podem ser observados como é o caso da Justiça. Os dados mostram uma queda de mais da metade do número de ações na Justiça. Vamos ver nos próximos meses e anos se essa tendência permanece.

Sul21: Você mencionou as mudanças profundas na estrutura produtiva que estão ocorrendo no sistema capitalista em escala global. Poderia detalhar um pouco as principais características dessas mudanças?

Clemente Ganz: Nós temos uma mudança de organização do patrimônio das empresas. Cada vez mais, as médias e grandes corporações estão mudando de propriedade. Isso significa que o dono tradicional familiar transfere a propriedade para fundos de investimento que têm outra lógica de organização. Eles estruturam a empresa para dar um retorno rápido e grande ao acionista e não para fazer um investimento produtivo na própria empresa. Isso muda a lógica do que é uma empresa. Há uma mudança também nos investimentos destinados à modernização tecnológica que agora se expande para o setor de serviços, especialmente comércio, e para a própria esfera pública. Há uma mudança no padrão tecnológico que passa a substituir força de trabalho em áreas onde a gente achava que não isso não seria possível.

O movimento sindical está começando a tomar iniciativas para tentar gerar respostas coerentes. Há iniciativas para reorganizar os sindicatos, envolvendo fusões, articulações, mudanças na estrutura sindical, simplificação, tentativa de ramificar o sindicato para a base, para o local de trabalho e para o bairro. No caso do setor de serviços, fracionado do jeito que é, fica muito difícil encontrar o local de trabalho desses trabalhadores. Uns trabalham em casa, outros na rua, outros por meio do celular. Para muitos deles, não há mais um local de trabalho propriamente. Em função disso, o bairro passa a ser uma referência importante.

Por outro lado, esse cenário de profundas transformações abre novas possibilidades também, como, por exemplo, criar um sindicato por meio do celular, que deixou de ser um aparelho de conversa, mas sim de comunicação e de processamento de dados. Hoje, é possível ter um sindicato organizado pelo celular, reunindo, deliberando e fazendo assembleia por meio dele. É possível conversar e fazer o trabalho de base pelo celular.

Há uma tendência de os sindicatos compreenderem que a sua atuação exigirá a construção de um sistema de proteção mais universal. Na medida em que você tem grandes massas de trabalhadores desprotegidos, altamente flexibilizados e trabalhando em várias situações ocupacionais instáveis e precárias, isso passa a ser uma dinâmica estrutural. Uma das atuações dos sindicatos pode ser justamente a de lutar por macrorregulações como a política de valorização do salário mínimo, política de proteção da saúde do trabalhador, política associada ao custo do transporte coletivo ou de garantia de habitação de interesse social. Essas políticas podem fazer com que o custo de vida seja reduzido para dar conta de uma situação onde o trabalhador tem uma remuneração menor e o Estado transfere, por meio dos impostos, bens e serviços de interesse público.

Talvez tenhamos que criar também formas de complementação de renda como as propostas de renda mínima ou renda básica de cidadania, onde o Estado garante esse complemento. Um dos objetivos desse tipo de proposta, além da proteção das pessoas, é garantir mercado de consumo. Se as pessoas não puderem consumir, as empresas vão vender seus produtos para quem? Os japoneses, agora, para acessarem a previdência social, só precisam ter 10 anos de contribuição.

Ao invés de aumentar o tempo de contribuição, que é o que nós estamos fazendo na nossa Previdência, eles estão diminuindo porque quase um terço da população japonesa tem mais de 60 anos. Se essas pessoas não tiverem renda, pela aposentadoria, as empresas vão perder mercado de consumo. É uma lógica completamente diferente. Tudo aquilo que orientou a nossa formação do sistema previdenciário terá que ser reorganizado. Os sindicatos têm que se preparar para isso, para viver em um novo ambiente, para novas formas de regulação, por um novo papel de representação e para uma nova estratégia de enfrentamento.

O capital está se organizando de uma forma diferente. De modo até relativamente contraditório, parte desse capital que opera no mundo é constituída por centavos recolhidos de milhões e bilhões de trabalhadores dispersos no mundo. Os ricos detém boa parte dos fundos de investimento e os controlam, mas estes fundos também reúnem pequenas poupanças dos trabalhadores do mundo todo. Os controladores dos fundos trabalham para devolver a esses micro-investidores algo que é contrário ao seu interesse como trabalhador, que é ter um emprego. O mundo está mais complexo e isso não é simples para o sindicato entender. Mais difícil ainda é encontrar formas de reagir a esse quadro.

Sul21: Você participou intensamente da experiência do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), criado pelo governo Lula e que, entre outras coisas, procurou estabelecer um espaço de diálogo entre capital e trabalho. Pela posição que o empresariado brasileiro adotou nos últimos anos, apoiando o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e o desmonte de direitos sociais e trabalhistas, você diria que a consciência desse setor não evoluiu nada com a experiência de diálogo do Conselhão?

Clemente Ganz: É difícil responder isso. O interesse do empresário é proteger e viabilizar a sua empresa. O Conselho, em alguma medida, era um espaço no qual o governo provocava sindicatos, empresários e outros atores sociais a pensar o interesse do país. O presidente Lula era um exímio provocador neste sentido. Ele levava demandas que obrigavam o Conselho a se reposicionar. Vou citar um caso em que isso aconteceu. Em um café da manhã, em 2004, o presidente disse: eu já fiz minha primeira tarefa em 2003, agora quero colocar o país no centro do desenvolvimento. Quais as propostas que vocês têm para isso? Alguns meses depois, tínhamos levantado 300 propostas, um número obviamente muito grande.

Essa questão suscitou o seguinte debate no Conselho: nós fizemos o nosso trabalho pensando nas nossas demandas setoriais, o que é legítimo, mas o presidente não pediu as nossas agendas particulares, mas sim um projeto de desenvolvimento para o Brasil. A partir daí, passamos a discutir uma agenda para o país que não se reduzia às nossas demandas setoriais.

Isso é um exemplo do espaço de debates que o Conselho podia promover. Com a participação do governo, foi possível construir acordos. O Conselho aprovou, por exemplo, mudanças na educação, política de cotas e um monte de coisas que, em um momento anterior, não aprovaria. Esse espaço de diálogo criou um nível de consciência a respeito de algumas coisas que eram necessárias para o país. Olhando para a nossa realidade de hoje, quinze anos depois, a gente se pergunta: cadê o empresário? O empresário agora é representado por um preposto de um fundo de investimento que está lá na Inglaterra. Qual o compromisso que esse preposto, funcionário do fundo de investimento, tem com o Brasil? Nenhum. Ele é um operador do fundo. Quem são os proprietários de capital hoje no Brasil com quem a gente possa fazer algum tipo de acordo?

A Reforma Trabalhista quer quebrar os sindicatos. Veja o que aconteceu na greve dos caminhoneiros. O que é conduzir uma greve como esta, com locaute junto, quando se tem dúvida sobre a legitimidade da representação dessa categoria? Um governo incompetente na negociação com uma liderança do jeito que está posta resulta no caos que tivemos. O custo do desmonte dos sindicatos será muito alto para a sociedade. Os problemas existem e se eles expressam do jeito que foram expressos na greve dos caminhoneiros isso pode gerar graves consequências. E esse problema, vale observar, está longe de ser encerrado. O governo fez um acordo por dois meses. E daqui a dois meses, o que ele fará? Os caminhoneiros vão ficar quietos?

Olhar para a frente significa pensar sobre quais são as representações de interesses que são capazes de se colocar em torno de uma mesa para conversar sobre os problemas do país. O Conselho se propunha a fazer isso. Nós ainda temos empresários nacionais, mas as grandes empresas estão sendo transferidas para o capital internacional. O micro, pequeno e médio empresário nacional tem capacidade de confrontar-se com essa estratégia? Nós vamos retomar os poços de petróleo que foram vendidos e recolocar a Petrobras sob a estratégia de uma empresa estatal? Vamos retomar o setor elétrico que foi vendido? Temos força para fazer isso? É disso que se trata.

Se o Estado permite que as nossas empresas sejam transferidas para o capital internacional do jeito que estão sendo transferidas, estamos perdendo capacidade nacional. O capitalista nacional, que estrutura a base do sistema produtivo do país, não é mais nacional. Os novos proprietários dessas empresas querem segurança e liberdade para agir do jeito que bem entenderem. E se o Estado quiser mudar alguma regra, terá que indenizá-los. É isso que eles estão dizendo. É possível construir um diálogo com essas forças? Talvez seja mais fácil fazer uma negociação direto em Paris, Nova York, Berlim ou Londres, que é onde as decisões são tomadas.

Tem gente ganhando muito dinheiro com esses negócios. Os interesses que estão por trás destes negócios, que apoiaram o impeachment da presidenta Dilma e financiam um monte de coisas, são interesses reais que estão no mundo. Esses mesmos interesses fazem guerra no Oriente Médio, matam, destroem países, acabam com a democracia, fazem o que for necessário. Aqui, estão operando uma das maiores economias do planeta. Transferir Petrobras, Eletrobrás, vender terra para estrangeiro… Não há negócios no mundo como os que estão sendo feitos no Brasil. Os interesses envolvidos são muito poderosos e capazes de mobilizar mudanças institucionais profundas. É muito sério e grave o que está acontecendo no país.

 

Foto: Guilherme Santos/Sul21

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