“Se é procissão que me fazem
Mudou muito a liturgia:
Não vejo andor para o santo,
Nem há nenhum santo à vista.
Vejo muita gente armada,
Vejo só uma confraria.
Talvez seja só um enterro
Em que o morto caminharia,
Que não vai entre seis tábuas,
Mas entre seis carabinas.
..”
Estes instigantes e emblemáticos versos da epigrafe são retirados da obra de João Cabral de Melo Neto, “Auto do Frade: Poemas para vozes”, que retrata, com maestria, o último dia de Frei Caneca (13/1/1825), um dos mais ilustres e dignos revolucionários da história do Brasil, condenado à morte, por ser um dos líderes da Confederação do Equador de 1824.
Mas, bem que poderia ser o diálogo entre o Estado Democrático de Direito e os 6? senadores, que decretaram a sua morte, no dia 31 de agosto de 2016, com o fim da farsa do Processo de Impeachment da Presidente Dilma Rousseff.
Ao cassarem o mandato da Presidente Dilma- legitimamente sufragado pelas urnas, em 2014-, cassaram o Estado Democrático de Direito, duramente conquistado com a Constituição Federal (CF) de 1988; a cassação dela representa apenas o trampolim para os reais objetivos dos coveiros da cidadania, serviçais do capital: o fim de todas estruturas políticas e sociais para a construção da Ordem Social, fundado no primado do trabalho, tendo como objetivos o bem estar e a justiça sociais, conforme preconiza o Art. 193, da CF.
No caso atual- o do impeachment do Estado Democrático de Direito-, os seus algozes, representados pelo Congresso Nacional e pelo Poder Judiciário- que o avalizou e referendou-, fizeram-lhe uma falsa profissão, cercada de todas as mais vis mentiras e subterfúgios, com uma única finalidade: enterrá-lo, de preferência, por todo o sempre.
O morto, no caso, o Estado Democrático de Direito, caminhou para o cadafalso, não entre seis carabinas- como o fez Frei Caneca-, mas, sim, entre 342 deputados federais- que admitiram o pedido de impeachment-, e 61 Senadores- que o julgaram procedente-, e o Supremo Tribunal Federal (STF), que garantiu a sua execução sumária.
Na execução de Frei Caneca, o carrasco negou-se a enforcá-lo, resistindo a toda sorte de sevícias e espancamento, para cumprir o seu ‘dever’ legal; por isto, formou-se, por coerção, um pelotão de fuzilamento. Na execução do Estado Democrático de Direito, os carrascos- deputados e senadores- executaram-no sem nenhum constrangimento, fazendo-o com um prazer mórbido, hipocritamente, em nome da ética, da moralidade e de tudo mais que puderam falsear.
Segundo o escritor irlandês, Oscar Wilde, “ A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”.
Às palavras do citado escritor, faltou dizer que a imitação da arte, pela vida, às vezes, se dá de forma tacanha e grosseira; mostrando-se a vida muito mais cruel do que a arte.
Para comprovar esta assertiva, basta que se compare o impeachment do Estado Democrático de Direito, do Brasil, com a obra prima de Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”, especialmente, no julgamento do jagunço Zé Bebelo, pelos demais componentes do bando.
Neste julgamento, Joca Ramiro, que era o chefe do bando, formou o seu Conselho de Sentença (Júri), composto por Sô Candelário, Hermógenes, Ricardão, Titão Passos e João Goanhá. “Reunidos no meio do eirado, numa confa”, tem lugar o julgamento. “Zé Bebelo não estava aperreado. Tomou corpo, num alteamento — feito quando o perú estufa e estoura — e caminhou em direitura.”
Ao iniciar o julgamento, Joca Ramiro ( “Juiz”), disse a Zé Bebelo: “Lhe aviso: o senhor pode ser fuzilado, duma vez. Perdeu a guerra, está prisioneiro nosso…”. Ao ouvir esta ameaça, Zé Bebelo bradou: “Se era para isso, então, para que tanto requifife? Em tréplica, por assim dizer, Joca Ramiro contestou-lhe: “O senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os sertanejos de seu costume velho de lei”. E, em réplica de tréplica, Zé Bebelo asseverou: “Velho é, o que já está de si desencaminhado. O velho valeu enquanto foi novo”.
O primeiro a votar- em voto aberto, como no Senado, no impeachment do Estado Democrático de Direito-, foi Hermógenes, que sentenciou: “Acusação, que a gente acha, é que se devia de amarrar este cujo, feito porco. O sangrante… Ou então botar atravessado no chão, a gente todos passava a cavalo por riba dele — a ver se vida sobrava, para não sobrar! (…) Cachorro que é, bom para a faca. (…) Dele é este Norte? Veio a pago do Governo. Mais cachorro que os soldados mesmos… Merece ter vida não. Acuso é isto, acusação de morte. Diacho, cão!”
Em seguida, Sô Candelário, desafiou Zé Bebelo, para um duelo, à faca. O Juiz, Joca Ramiro, indeferiu esta proposta, e afirmou-lhe: “Agora é a acusação das culpas. Que crimes o compadre indica neste homem?”. Sô Candelário, serenamente, respondeu-lhe: “Crime?… Crime não vejo. (…) Veio guerrear, como nós também. Perdeu, pronto! A gente não é jagunços? A pois: jagunço com jagunço — aos peitos, papo. Isso é crime? Perdeu, está aí feito umbuzeiro que boi comeu por metade… Mas brigou valente, mereceu… (…) o que acho é que se deve de tornar a soltar este homem”.
O terceiro a votar foi Ricardão, exarando a seguinte sentença capital “… Zé Bebelo veio caçar a gente, no Norte sertão, com mandadeiro de políticos e do Governo, se diz até que a soldo… A que perdeu, perdeu, mas deu muita lida, prejuízos. (…) Dou a conta dos companheiros nossos que ele matou, que eles mataram. Isso se pode repor? E os que ficaram inutilizados feridos, tantos e tantos… (…) A gente não tem cadeia, tem outro despacho não, que dar a este; só um: é a misericórdia duma boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada e acertada”.
O quarto foi Titão Passos, que sentenciou: “Este homem não tem crime constável. (…) Ah, eu, não. Matar, não”. E, por último, João Goanhá, que corrobora as palavras de Sô Candelário e Titão Passos: “… meu voto é com o compadre Sô Candelário, e com meu amigo Titão Passos, cada com cada… Tem crime não. Matar não. Eh, dia!”.
Por maioria, Zé Bebelo foi absolvido e desterrado para Goiás; para enquanto Joca Ramiro vivesse, como ficou registrado na sentença oral.
Como se vê, os personagens da obra de Guimarães Rosa mostraram muito mais hombridade e decência do que os senadores que decidiram pela morte do Estado Democrático de Direito; é de todo lamentável que estes não tenham mostrado a mesma ética daqueles; inclusive dos que votaram pela sentença de morte de Zé Bebelo, pois que, para tanto, não se esconderam sob nenhum pretexto e/ou capa de moralidade; fizeram-no por vingança, e nada mais.
Um dos principais líderes da Revolução Francesa de 1789, Danton, ao ser arguido pelo Juiz de Instrução, do Tribunal Revolucionário, que o condenou à guilhotina, sobre o seu endereço, redarguiu:
“.. em breve; o nada. Ao depois, o panteão da história”.
Com os senadores que votaram pelo impeachment acontecerá exatamente o contrário, pois que, em breve, serão tratados como valentes heróis, pelos seus iguais, pelo capital e seus capatazes. Porém, ao depois, indiscutivelmente, irão para o lixo da história. Lugar, no qual, a maioria sempre esteve.
Apesar deles, com certeza, a cidadania não perecerá. Como bradou o Poeta Castro Alves, no magnifico Poema “ O Livro e a América”: “.. num poema amortalhada, nunca morre uma nação..”.
Como fecho, destes singelos comentários, sobre o mais trágico desfecho de todas quantas farsas já se materializaram no Brasil, e que se contam às dezenas; nada melhor do que recado de João Cabral de Melo Neto, nos realçados poemas, sentenciado, para a eternidade, nesta estrofe:
“ Ser fuzilado, é dignidade
do militar, mais que castigo.
Fuzilado assim, sem direito,
recebe mais que o pedido.
Dizem que a forca reagiu,
pegou estranho reumatismo.
Perdeu a honra de enforcar
de seus patrícios o mais digno”.
José Geraldo de Santana Oliveira
Consultor Jurídico do Sinpro Goiás