O filosofo alemão Karl Marx, na obra “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”, parafraseando Hegel , diz que os personagens e os fatos históricos acontecem, por assim dizer, duas vezes: a primeira, como tragédia, e a segunda, como farsa.

Como, na história, tudo produz consequências, a farsa de que falava Marx também se converte em tragédia.

A terceirização, que, neste ano de 2015, vem se constituindo no principal debate dos muitos que se travam em âmbito nacional, com prenúncio de tragédia sem par nos últimos cem anos, confirma a máxima de Marx.

Talvez, com as pequenas ressalvas de que, desde o seu surgimento, em 1974, com a Lei N. 6.019, já se revestia da condição de farsa e a de que esta lei continha mais garantias  do que as previstas no Projeto de Lei (PL) N. 4.330/04 – aprovado na Câmara Federal, e em tramitação no Senado, sob o N. PLC (Projeto de Lei da Câmara)  30/2015 -, basta dizer que, ao contrário de agora, a referida lei assegurava aos trabalhadores terceirizados os mesmos diretos daqueles que eram contratados diretamente pela empresa tomadora – atualmente, chamada de contratante.

A terceirização sob discussão ganhou contornos de dramaticidade a partir do início dos anos da década de 1990; àquela oportunidade, as empresas exerceram forte pressão e influência sobre o Tribunal Superior do Trabalho (TST) para que ele fixasse jurisprudência  favorável à terceirização, o que foi feito por meio da Súmula N. 331, de 1993.

Argumentavam as empresas e os seus porta-vozes que o reconhecimento da licitude da terceirização de suas atividades meio era essencial para que ganhassem competividade, para se dedicarem às suas atividades-fim.

Tanto isto é verdadeiro, que o verbo terceirizar – que é neologismo – passou a ser registrado no Dicionário Novo Aurélio – Século XXI como verbo transitivo direto, formado pelo substantivo terceiro mais o sufixo ‘izar’, com o significado de transferir a terceiros (atividade ou departamento que não faz parte de sua linha principal de atuação).

O Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, de Domingos Paschoal Cegalla, dá-lhe o claro significado de “conceder a exploração de (serviço público) a empresa particular; proceder (uma empresa) à terceirização, ou seja, transferir a terceiros (a outros) atividade ou função que não constitui o núcleo de sua atuação, de seu negócio, com vista a reduzir os custos, melhorar e agilizar os serviços”.

Nesse verbete, acha-se registrada, com letras indeléveis, a seguinte notícia, publicada no jornal ‘O Globo’, edição de 24/9/2000, e assinada por Fabiana Queiroz: “A redução de custos já foi a razão principal para se terceirizar uma atividade”.

Passados 22 anos da aprovação da Súmula N. 331, do TST – um paraíso para as empresas e um inferno para os trabalhadores -, as suas principais consequências são quase 13 milhões de terceirizados e o calote de centenas de milhões de reais aplicado por empresas fantasmas que anoitecem e não amanhecem, deixando milhares de trabalhadores sem emprego, sem salários, FGTS, férias, contribuições previdenciárias etc., sem consequências para as empresas tomadoras (contratantes), generosamente protegidas por essa Súmula, que lhes atribui responsabilidade meramente subsidiária para  com os direitos fundamentais sociais, lesados pelas terceirizadas, que desaparecem.

Pois bem. A Súmula N. 331 do TST, que tanto serviu e ainda serve às empresas que terceirizam as suas atividades, passou a ser demonizada por elas, unicamente porque veda a terceirização da atividade-fim; e, o TST, por baixá-la e mantê-la, acusado de usurpar a função legislativa privativa do Congresso Nacional.

Essas pesadas acusações contra a realçada Súmula e o TST encontram-se estampadas no Recurso Extraordinário (RE) N. 713.211 e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) N. 324, ambos em tramitação no STF, sendo que aquele com repercussão geral.

Na recente audiência pública realizada pelo Senado Federal ao dia 19 de maio corrente – presidida pelo presidente do Congresso Nacional, senador Renan Calheiros, com a presença da CUT, da Força Sindical, da CGTB, da UGT, do Fórum  Nacional contra a Terceirização, do Ministério Público do Trabalho (MPT), do MTE, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), da  Confederação Nacional do Comércio (CMC), da Agência Nacional dos Transportes, da Fiesp-SP, do professor Márcio Pochmam, do professor Hélio Zylberstein e de 43 senadores, para debater o PLC N. 30/2015 -, os representantes patronais, em uníssono, repetiram as já mencionadas cantilenas contra a Súmula N. 331 do TST, acusando-a, ainda, de provocar a insegurança  jurídica total para todas as empresas, e, por conseguinte, para o país como se elas o fossem.

Mas como, cabe-se perguntar, se essa Súmula faz exatamente o contrário, ou seja, dá segurança jurídica às empresas que terceirizam as suas atividades-meio, inclusive quanto à responsabilidade, que, repise-se, é meramente subsidiária?

O que os empresários e seus asseclas, hipocritamente, chamam de insegurança jurídica é a proibição de terceirização da atividade-fim pela hoje odiada  Súmula N. 331, do TST, feita, outrora, sob medida.

Com isso, desnudam-se os seus falaciosos discursos, que se travestem de falsa defesa da regulamentação dos direitos dos terceirizados. Para esses falsos paladinos, os trabalhadores que se explodam – parafraseando o corrupto personagem do humor de Chico Anísio, Justo Veríssimo -; a sua única finalidade é o fim da restrição de terceirização da atividade- fim, todo o resto é acessório. O que querem é a liberação geral e irrestrita da terceirização: sem freio, sem limite e sem garantia de isonomia.

Não se pode deixar registrar, com absoluto desalento, que a Força Sindical, a segunda maior central sindical do país, faz a defesa enfática desse famigerado PLC, como foi expressa, de maneira indelével, na supracitada audiência pública; o que, em certo sentido, foi corroborado pela CGTB, para quem o PLC é bom, só falta aperfeiçoá-lo.

Dos representantes patronais, isso é esperado e normal, mas, dos representantes dos trabalhadores, jamais; essa conduta só tem um nome: traição.

O PLC N. 30/2015, tal como aprovado na Câmara Federal, faz exatamente isto, sendo essa a sua essência e o seu comando central, constituindo-se os seus demais dispositivos em simples acessórios, desprovidos de conteúdo.

No afã de proteger o seu objetivo maior e único, os representantes das empresas argumentam que todos os direitos sociais elencados no Art. 7º da CF estão garantidos no PLC N. 30/2015 e que, por isso, este, ao contrário do que apregoam os dirigentes sindicais, deve merecer aplausos e apoio incondicional dos trabalhadores. Nada mais falso e desonesto.

Em dezembro de 1967, portanto, há quase meio século, Norberto Bobbio, ao discursar no Simpósio Internacional dos Direitos do Homem, em Turim, Itália, afirmou e confirmou, pelos demais anos de sua vida:

“[…] o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los.

[…]o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los. Não preciso aduzir que, para protegê-los, não basta proclamá-los. Falei até agora somente das várias enunciações, mais ou menos articuladas. O problema real que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para efetiva proteção desses direitos”.

No livro “A era dos direitos” – Campus, 21ª Tiragem – página 60, afirma: “[…] uma coisa é falar dos direitos do homem, direitos sempre novos e cada vez mais extensos, e justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva. […] os direitos sociais, como se sabe, são mais difíceis de proteger do que os direitos de liberdade…”.

O PLC 30/2015, apesar de não declarar nominalmente a supressão dos direitos fundamentais sociais – até por isso ser juridicamente impossível, por afrontar o devido processo legal subjetivo (formal) -, esvazia-os de conteúdo, afrontando o devido processo legal substantivo, que, nas palavras de Bobbio, é a sua efetividade.

Não há sequer previsão, no PLC N.30/2015, de que o trabalhador terceirizado tenha garantido os mesmos direitos assegurados ao que é contratado diretamente pela empresa que o terceiriza – contratante, como denomina o PLC -, como o fazia a Lei N. 6019/74.

Essa garantia faria ruir o objetivo maior da terceirização, que é a redução de custos por meio de achatamento de direitos.

Conforme se colhe do livro “A terceirização e o Direito do Trabalho”, do desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região da cidade de São Paulo, e da entrevista do vice-presidente do TST, ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, ao Portal Eletrônico Consultor Jurídico, a terceirização só se dá para que haja redução de custos, que se assenta obrigatoriamente em redução de direitos sociais.

Igualmente, o PLC N. 30/2015 não resguarda o enquadramento sindical dos terceirizados no mesmo sindicato dos diretamente contratados, o que, de plano, retira-lhes o direito à aplicação das convenções e acordos coletivos destes.

O PLC somente a prevê, nas hipóteses em que a contratante (tomadora) e a contratada (terceirizada) possuam a mesma atividade econômica,  a que, a toda evidência, não se concretizará, posto que ninguém em sã consciência acredita que um banco irá terceirizar as suas atividades para outro banco, um hospital, para outro, e uma escola, para outra, haja vista isso não guardar qualquer sintonia com o que o PLC efetivamente busca: insista-se, a redução de custos.

Soma-se a isso a possibilidade de se criarem empresas sem empregados, quer a contratante, se terceirizar todas as suas atividades, como é previsto no comentando PLC, quer a contratada, por meio das fraudulentas pessoas jurídicas individuais.

Assim, por mais que os vendedores de falsas ilusões tentem, não há como sequer se imaginar que os direitos fundamentais sociais fiquem preservados  de modo a garantir o patamar mínimo civilizatório do qual não podem arredar as normas, quer heterônimas (leis, decretos etc.), quer autônomas (convenções e acordos coletivos), como determinou o STF, no julgamento do RE 5904150-SC, que trata do alcance dessas normas, realizado ao dia 30 de abril de 2015.

O longo e propositadamente prolixo texto do PLC N. 30/2015, se for convertido em lei, criará um contexto social fantasmagórico, porquanto, pelos seus dispositivos, serão possíveis e concretos: empresa sem empregado, pois tudo poderá ser terceirizado; empregado sem emprego, por meio de pessoas jurídicas individuais; sindicato sem categoria profissional, posto que, como afirmou o deputado José Carlos Aleluia, do DEM da Bahia, não haverá mais categoria, somente terceirizado, o que possibilitará a surreal existência de sindicato de professores sem estes etc.; trabalhadores iguais tratados de forma absolutamente desigual, pois que não haverá isonomia salarial e dos demais direitos, entre empregados diretos e terceirizados.

Esses aspectos, que  encerram a essência do PLC em questão, rasgam impiedosamente os fundamentos, garantias e princípios da Constituição Federal (CF), da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, inciso III),  dos valores sociais do trabalho (Art. 1º, inciso IV), da proteção da relação de trabalho (Art. 7º, caput e inciso I), da valorização do trabalho humano (Art. 170, caput), da função social da propriedade (Art. 170, inciso III), do primado do trabalho, do bem estar e da justiça sociais (Art. 193), o que o torna, inapelavelmente, inconstitucional, como sustentam, com absoluta densidade jurídica e política, o Ministério Público Federal (MPF), no RE 7132011 e na ADPF N. 324, por meio de dois circunstanciados e incontestáveis pareceres, da lavra do procurador Odin Brandão Ferreira e aprovados e assinados pelo procurador -geral, Rodrigo Janot, disponíveis na página do STF; e o Ministério Público do Trabalho (MPT), em todos os debates que tiveram lugar até aqui, fazendo-o pelo seu procurador-geral, Luís Camargo, e pelo procurador Helder, que falou em nome do órgão nas duas audiências realizadas no Senado Federal.

A escancarada e total afronta a esses preceitos constitucionais inafastáveis não passa pelo crivo do devido processo legal substantivo, preconizado no Art. 5º, inciso LIV, da CF, como se constata pelo entendimento do STF, abaixo mencionado.

O ministro aposentado, Carlos Veloso, ao votar pelo deferimento de medida liminar nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada contra a Medida Provisória N. 524/94, assentou, em seu voto, lapidar entendimento sobre o devido processo legal substantivo, como se constata pela sua literalidade:

“No que toca o art. 5º, da MP 524, consagra ele regra desarrazoada.

A cláusula do due processo f Law, que surgiu em 1215, na Magna Carta do Rei João Sem Terra, com caráter processual penal, evoluiu para tornar-se garantia do processo em geral e, a partir da interpretação das Emendas 5ª e 14ª da Constituição americana, adquiriu caráter substancial limitadora de  seu mérito das ações estatais e especialmente do Poder Legislativo; as leis devem  ser elaboradas com justiça e razoabilidade, vale dizer, as leis devem ser razoáveis e devem guardar um nexo com o objetivo que se quer atingir, lecionou na Suprema Corte, o Juiz Holmes. Com base no due processo of Law, com caráter substantivo a Corte de Warren, nos anos de 1950, proferiu notáveis decisões em defesa de minorias étnicas e econômicas (…).

A Constituição brasileira de 1988, Sr. Presidente, inspirando-se no direito constitucional americano e pela ação do Prof. Carlos Roberto de Siqueira Castro, que levou a questão ao âmbito da Assembléia Constituinte, a Constituição de 1988, repito, evoluiu, tornando explícito, tornando expressa a cláusula do due processo of Law, sob o ponto de vista substantivo. A Constituição, no art. 5º, inciso LIV, consagra due processo of Law com caráter substantivo e, no inciso LV do mesmo artigo 5º, due processo of Law  com caráter processual. Isto quer dizer que, a partir daí, normas desarrazoadas, normas que não guardem um real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir, são normas inconstitucionais”.

Destarte, com base nessa tese vinculante do STF, por todos os ângulos que se analisar o PLC ora contestado, imperiosamente, há de se concluir, que ele, em sua essência, é violador direto dos preceitos fundamentais sociais constitucionais, retroapontados, reclamando, melhor seria dizer gritando, pela imediata declaração de sua inconstitucionalidade, sem exceção, pois o legislador ordinário invade competência indeclinável do constituinte originário, ao fazer restrições repudiadas por este. Além do que, inverteu a ordem da hierarquia das normas, ao fazer a lei ordinária prevalecer sobre a CF. Isso é teratológico e insuportável no Estado democrático de direito, posto que representa, ao fim e ao cabo, a sua inaceitável negação.

O PLC N. 30/2015 atinge o âmago do princípio da vedação do retrocesso social. Segundo Dilmanoel de Araújo Soares, citando Sarlet  –  em Direitos Sociais e o Princípio da Proibição de Retrocesso Social -, “ […] a proibição de retrocesso é um princípio implícito, baseado no sistema constitucional, e que, para além dos institutos a que se  vincula, também se fundamenta nos princípios da dignidade humana; do Estado Democrático e Social de Direito; da segurança jurídica; da proteção da confiança, razão pela qual  não admite a fórmula do ‘tudo ou nada’[…]”.

Ainda conforme Dilmanoel, “[…] ter segurança jurídica significa ter a garantia, a proteção dos direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais, como concretização do princípio da dignidade humana, e cujo elemento nuclear parece residir no direito que as pessoas têm de poder contar com prestações materiais indispensáveis para uma vida com dignidade, que atenda a padrões qualitativos mínimos para uma existência condigna”.

Para o ministro do STF Luís Roberto Barroso, efetividade é “[…] a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos princípios legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social”.

Estas garantias são peremptoriamente negadas pelo PLC N. 30/2015. Como resolver essa antinomia?. A toda evidência, no âmbito legislativo, pela rejeição dos dispositivos que afrontam a CF; e, se eventualmente, vier a ser convertido em lei, pelo controle de constitucionalidade, que tem lugar na ADI, a qual tem a finalidade precípua de impedir o esvaziamento dos fundamentos e garantias constitucionais, escancarados no PLC sob contestação.

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Por: José Geraldo de Santana Oliveira

Assess. Jurídico do Sinpro Goiás e Consultor jurídico da Contee

 

 

 

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Jorn. FERNANDA MACHADO

Assess. de Imprensa e Comunic. do Sinpro Goiás