Educadores e advogados discutem a eficácia de ações pedagógicas na resolução de conflitos escolares

 

Durante o recreio, dois alunos brigam e um deles acaba com os dentes quebrados. A situação envolve não somente prejuízos financeiros – pois o jovem agredido terá de fazer tratamento odontológico – mas também problemas entre a turma e com as famílias dos envolvidos. Apesar de hipotética, a situação ilustra um dilema enfrentado por escolas públicas e privadas: nesse tipo de ato violento, que não pode ser caracterizado como crime grave, mas tampouco ser tratado como um caso simples de indisciplina, como os gestores devem atuar? Ou seja, para resolver conflitos como esse, quando valer-se somente de atitudes pedagógicas e quando partir para o caminho judicial? Longe de ser uma resposta fácil de formular, o assunto divide as opiniões, inclusive, dos advogados e pedagogos consultados nesta reportagem. Apesar de considerarem que, em geral, o ideal é solucionar o problema dentro do âmbito escolar, chamando as famílias dos envolvidos para participar do processo, a ação pedagógica pode esbarrar em limites.

Miriam Abramovay, coordenadora da Área de Juventude e Políticas Públicas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), pesquisa sobre violência escolar há quase 15 anos, com foco nas instituições públicas. Baseada em suas últimas investigações, tem identificado crescentes tentativas de judicialização de temas relativos ao cotidiano da educação, mesmo em casos que poderiam ser solucionados pela própria escola. “É evidente que a instituição não dá conta de resolver sozinha os casos mais graves, devendo apelar a outras instâncias. Porém, em brigas em que ninguém estava armado, o melhor é não envolver atores externos”, opina. De acordo com ela, ao apelar à polícia para controlar qualquer briga, a instituição tende a aumentar a sensação de insegurança. “Fica a impressão de que ela é incapaz de solucionar seus próprios problemas”, diz.

Mediação ou justiça?
Outro fenômeno recente observado por Miriam se relaciona à publicação de agressões na internet, o que, na Inglaterra, já é caracterizado como crime. Nesse sentido, a pesquisadora lembra que, recentemente, uma estudante foi agredida na porta de sua escola, em Santa Catarina, e teve os dentes quebrados. Os agressores publicaram as fotos na internet, humilhando publicamente a vítima. “Apesar de a briga ter ocorrido do lado de fora, a instituição poderia ter feito alguma intervenção para amenizar as consequências do ocorrido. Não foi o que aconteceu”, lamenta.

Também pesquisadora do assunto, Flávia Schilling, professora associada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação em Direitos Humanos, demonstra visão parcialmente distinta de Miriam. Para ela, quando há agressões físicas violentas, a lei deve ser acionada. “A ação pedagógica é limitada: por isso existe a lei. O agressor deve responder, pois extrapolou os limites do que é tolerado”, defende. No entanto, quando se trata de uma briga sem grandes consequências, ela aconselha os gestores a se basearam somente no diálogo e na mediação para resolver o conflito.

Ainda conforme a docente, para evitar essas situações, as escolas devem contar com um coletivo de adultos que atue preventivamente, discutindo regras comuns e propondo acordos. “A inexistência desse grupo pode criar um clima de cada um por si e a sensação de que o tempo que se passa na escola é perdido”, comenta Flávia. Em geral, afirma ela, instituições que não viabilizam esse espaço de discussão coletiva possuem problemas na situação organizacional e funcional do corpo docente, que costuma ser instável e temporário, sem vínculos com o bairro, com as famílias e com os estudantes.

Quando o ato é crime
Para Marlova J. Noleto, diretora da área programática da Unesco no Brasil, atitudes que representam uma ameaça à vida de terceiros devem ser tratadas como crime, entre elas agressões físicas ou o porte de armas. No entanto, ela considera que muitos desses atos extremos podem ser evitados quando há um trabalho de diálogo feito pela equipe da escola. “Os educadores devem estar atentos e intervir antes que as situações de violência saiam do controle e se transformem em crimes”, aconselha.

E é justamente essa falta de amparo institucional citada pelas entrevistadas que pode levar as vitimas de conflitos escolares a buscarem ajuda externa para verem seus danos reparados. Nesse sentido, Juan Biazevic, juiz de direito, relata dois casos nos quais observou essa relação – apesar de eles envolverem estudantes maiores de idade.

No primeiro deles, um aluno atirou uma casca de banana na professora. Afastada por problemas de saúde, ela resolveu mover uma ação civil para pedir indenização ao estudante, cuja família é de baixa renda e não teria, portanto, recursos para arcar com a decisão da Justiça, caso ela favorecesse a docente. Ao avaliar o caso, Biazevic concluiu que, ao mover a ação, a professora não buscava dinheiro e sim o reconhecimento de que o ato do aluno foi errado. Como não encontrou respaldo na instituição para tratar o problema de forma pedagógica, partiu para a ação judicial. “Acredito que, se a professora tivesse recebido apoio da diretoria, o problema teria sido resolvido dentro do contexto escolar”, opina.

Na segunda situação vivenciada pelo juiz, um aluno agrediu verbalmente a professora, quando ela o proibiu de falar ao celular. A docente também partiu para uma ação judicial e, durante o processo, foi descoberto que o jovem era trabalhador, porém apresentava problemas cognitivos e havia sido abandonado pela mãe, que era fisicamente parecida com a professora que ele agrediu. “É um caso com muitas especificidades, mas é difícil traduzir esse tipo de situação para um processo judicial. Eu não queria condená-lo criminalmente por desacato, mas o caso acabou prescrito e se resolveu por si mesmo”, conta. Na sua visão, se a docente tivesse encontrado respaldo entre a diretoria escolar, tampouco teria partido para a via judicial.

Quem se responsabiliza?
Em relação aos prejuízos financeiros ou psicológicos causados por conflitos escolares, Biazevic opina que os pais são sempre responsáveis pelos atos de violência dos menores e devem ressarcir as vítimas. Essa opinião diverge das ideias de Fernanda Misevicius, especialista em direito educacional, ao opinar que a escola privada ou o poder público – nos casos de escola pública – respondem pelas lesões que o aluno sofre. Dessa maneira, os prejuízos materiais ocasionados à vítima devem ser custeados pela instituição de ensino, sendo que ela pode, depois, cobrar do aluno ou de sua família o valor custeado. Fernanda ressalta, no entanto, que a repressão de condutas impróprias deve ocorrer de forma proporcional, com a análise de cada caso. “Não há como prever, de antemão, uma regra geral”, assegura.

Em consonância com Fernanda, Ricardo Mello, psicólogo que atuou por 11 anos no instituto Sou da Paz com projetos de prevenção à violência, afirma que os conflitos fazem parte da convivência escolar – seja em instituições públicas ou privadas – e que devem ser vistos como oportunidades para trabalhar a formação moral dos alunos. “O conflito não pode virar um tabu, já que a escola deve educar a partir dele”, resume. Hoje consultor da organização para o assunto, ele explica que, para resolver conflitos, o ideal é trabalhar por meio de um processo de responsabilização, que ajuda o jovem a compreender o dano causado com o ato violento.

Além disso, Mello opina que as situações de conflito geralmente apresentam elementos prévios e o gestor precisa saber identificá-los. Foi o que aconteceu em uma classe do 7º ano na Escola Lourenço Castanho, de São Paulo, quando dois alunos sem histórico de violência brigaram durante a aula, surpreendendo o professor. Karyn Bulbarelli, psicóloga e diretora educacional, conta que os estudantes foram chamados para conversas, descobrindo-se que um deles estava, há dias, ofendendo o outro, sem que este reagisse. O conflito foi resolvido no âmbito escolar, por meio do diálogo, sem a necessidade de envolver as famílias, já que nenhum dos estudantes saiu machucado.

Similar ao colégio particular, Luiz André da Silva Malato, diretor da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Dr. Celso Malcher, em Belém do Pará, também prioriza a resolução dos conflitos internamente, mas desde que eles não envolvam o uso de armas. “Um estudante que apelida outro com nomes depreciativos é diferente de quando há ameaças com faca ou uso de drogas”, avalia.
reduzindo a violência

No entanto, diz ele, cada situação precisa ser avaliada com suas especificidades e, nesse sentido, lembra que, recentemente, um aluno de 16 anos foi pego usando drogas nas dependências da escola. Como esse estudante não apresentava histórico de indisciplina ou problemas de violência, a direção resolveu adotar uma postura de diálogo, para entender os motivos que levaram o jovem à atitude, em vez de partir para uma punição.

O diretor lembra que, do ponto de vista jurídico, não se diferenciam agressões leves ou graves, ou seja, todas são caracterizadas como agressões. Por isso, antes de recorrer a ações judiciais, a escola – que possui 1,5 mil alunos – avalia o contexto em que a briga ocorreu.

Localizada em um bairro da Grande Belém conhecido pelos conflitos recorrentes, a escola foi o alvo de iniciativas para eliminar a violência a partir do programa estadual ProPaz, criado em parceria com a Universidade Federal Rural da Amazônia. Com a redução dos conflitos, conseguiu atingir nota no Ideb de 5,5 para os anos iniciais (1º a 4º) e 4,8 para os finais (5º ao 8º).

A Secretaria de Educação do Estado do Pará fornece, ainda, relatórios periódicos sobre os casos de violência para que, com base nesses documentos, os gestores desenvolvam ações de prevenção. E, quando há conflitos na instituição, Malato conta que a diretoria também se vale do trabalho da Justiça restaurativa. “O Ministério Público Estadual oferece ferramentas para as escolas criarem círculos de paz e promoverem a reconciliação entre as partes que brigaram”, comenta.

Poder público em ação
Apesar de grande parte dos estados brasileiros não contarem com fóruns ou centros de conciliação dedicados exclusivamente à resolução de conflitos escolares, muitos dispõem de ferramentas para auxiliar os gestores nessa empreitada, da mesma forma que ocorre no Pará. Assim, em Alagoas, há o Programa Cidadania e Justiça na Escola (PCJE), por meio do qual juízes e promotores de Justiça oferecem palestras a crianças e adolescentes sobre o assunto, fazendo com que o tema seja incluído na grade curricular das redes pública e privada. No Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça mantém um convênio com a Secretaria de Educação para capacitar diretores e professores das escolas na mediação de conflitos. Já em São Paulo, Egberto Penildo, juiz da vara da infância e juventude, conta que o poder judiciário tem feito parcerias com escolas, no sentido de ajudá-las a resolver conflitos por meio da Justiça restaurativa. “Esse caminho propõe que o crime e a violência não devem ser tratados somente por meio de ações punitivas, mas também com outras baseadas no diálogo e que viabilizem ao agressor entender as consequências do seu ato”, esclarece o juiz. De acordo com ele, se em uma escola parceira do programa é feito um boletim de ocorrência por conta de conflitos, é possível entrar com o processo de Justiça restaurativa e retirar a denúncia formal. E o trabalho de reconciliação entre as partes desentendidas pode envolver representantes da escola, do poder judiciário, do conselho tutelar e ONGs. “Para romper com a dinâmica da violência, desenvolvemos um processo de corresponsabilização, de forma que todas as partes envolvidas se conscientizem de sua responsabilidade em relação ao conflito”, conclui.

 

*Reportagem publicada originalmente na edição 212 de Educação, com o título “Nas fronteiras da violência”

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Fonte: Revista Educação

 

 

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Jorn. FERNANDA MACHADO

Assess. de Imprensa e Comunic. do Sinpro Goiás