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Escolas civis, gestão militar

Da ilegalidade da militarização à desconfiguração das escolas públicas no Brasil

A expansão da militarização das escolas públicas no Brasil cresce a passos largos, não só na quantidade de escolas militarizadas, mas também nos formatos de implementação do modelo. Nesse texto, vamos falar sobre o que é a militarização das escolas; como esses processos são diferentes para os casos distrital, estadual e municipal; o que diz a lei e em quais pontos a militarização a desafia; e como a educação sofre a negação de uma série de princípios a partir de sua entrega para a gestão militar.

Mas o que é a militarização das escolas? É o processo de repasse da gestão administrativa e disciplinar das escolas civis públicas, vinculadas às secretarias distrital, estaduais e municipais de educação para militares das Polícias Militares, Corpos de Bombeiros, Exército e demais forças. As formas de militarização são diversas e se dão de acordo o modelo estabelecido entre as secretarias de educação e de segurança das unidades federadas. 

No caso dos sistemas distrital e estaduais de educação, o processo tem se dado por meio de convênio entre as secretarias de educação e de segurança, que usam parte do seu efetivo, seja da ativa ou inativos, que passam a atuar na gestão das instituições escolares militarizadas. Nesses casos, o número de militares designados para atuar nas escolas pode variar de estado para estado, mas sempre conta com um efetivo maior, que atua nas gestões administrativa, disciplinar e em alguns casos pedagógica, além de darem aulas em disciplinas que são acrescidas ao currículo, como Civismo, Moral e Cívica e Ordem Unida. 

No caso da militarização das escolas municipais, via de regra, os prefeitos fazem convênio, acordos ou parcerias com os comandos das polícias militares, que passam a assessorar as escolas para a aplicação da “Metodologia dos Colégios da Polícia Militar” ou fazer processo de gestão compartilhada nas escolas municipais. Como os municípios não possuem polícias, o número de militares atuando nas escolas costuma ser menor, mas no acordo os comandos definem o número mínimo a ser contratado de comandantes e monitores, que serão responsáveis pela implantação e implementação do modelo. 

Mas, em que medida, policiais militares podem atuar como gestores e professores das instituições de ensino, no Brasil? Qual é a base legal que permite a militarização das escolas civis públicas no país? Uma escola gerida com base nos princípios militares pode garantir o direito à educação, na perspectiva do desenvolvimento integral da pessoa, da formação para cidadania e para o mundo do trabalho? 

Sem a pretensão, de nessas linhas, esgotar estas questões, vamos focar no que a lei brasileira define sobre alguns dos princípios que devem reger a educação, quem são os profissionais da área, as funções do magistério e quem pode atuar nesse campo. 

Cabe lembrar, no entanto, que as escolas militares, assim como as militarizadas, não figuram na legislação educacional brasileira. O artigo 83 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional- LDB ( Lei 9.394 de 1996) – uma das principais legislações para a nossa educação – define que “o ensino militar é regulado em lei específica, admitida a equivalência de estudos, de acordo com as normas fixadas pelos sistemas de ensino”, e o caso da militarização das escolas de educação básica não se trata do ensino nas instituições militares e sim em escolas civis públicas.

A atual LDB define a educação de forma ampla e reforçando o disposto na Constituição Federal de 1988, afirma ser a educação direito de todos e dever do Estado. De acordo com seu art. 1º “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.

A educação escolar é compreendida como aquela que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias e é disciplinada pelo arcabouço legal do país, especialmente pela citada LDB, Constituição Federal de 1988 e legislações correlatas. 

Para que o direito à educação, especialmente aquela da escola, seja garantido, a lei define que esta precisa ser desenvolvida por profissionais habilitados, ou seja, os profissionais da educação, que serão os responsáveis pela organização e funcionamento da escola e, sobretudo, pela formação acadêmica dos estudantes. Isso está disposto no artigo 61 da LDB. 

Para ser docente na educação básica, o art. 62 determina que é necessário ter formação em nível superior, em curso de licenciatura plena, admitindo-se o magistério, na modalidade normal, para os que atuarão na educação infantil e nos cinco primeiros anos do ensino fundamental. 

Além de definir quem são os profissionais e a formação que precisam ter, a LDB define também, no art. 67, as condições para que esses profissionais exerçam outras funções no campo do magistério: “a experiência docente é pré-requisito para o exercício profissional de quaisquer outras funções de magistério, nos termos das normas de cada sistema de ensino” e “são consideradas funções de magistério as exercidas por professores e especialistas em educação no desempenho de atividades educativas, quando exercidas em estabelecimento de educação básica em seus diversos níveis e modalidades, incluídas, além do exercício da docência, as de direção de unidade escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico”.          

Mas a lei não está aí só para deixar as coisas claras e nos seus lugares, algumas vêm para confundir. Em 2019 o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional 101/2019, que estendeu aos militares o direito à acumulação de cargos públicos prevista no art. 37, inciso XVI, da Constituição. O citado inciso, proibia a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto “a) a de dois cargos de professor b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico ou c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas”

Essa alteração tem sido utilizada para justificar a legalidade de militares da reserva, aposentados ou da ativa atuarem na gestão administrativa, disciplinar e administrativa-pedagógica das escolas públicas civis brasileiras. 

A alteração na Constituição de 1988 não muda tudo que discutimos antes, que está previsto na LDB, no que se refere às exigências de formação ou exercício das funções na educação para os profissionais da educação. Isso significa que a emenda permite apenas que os militares das PMs e dos Bombeiros acumulem seus cargos com um outro da área de saúde ou educação, mas não os isentam de ter formação específica para isso. 

Para além das questões da legislação, do que pode e do que não pode, e tratando das questões pedagógicas, é ocioso lembrar que ao militarizar uma escola pública os governos desfiguram a instituição escolar, destituindo-a da sua forma de organização. Fazem isso quando nas escolas militarizadas são negados os princípios de: 

1. Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, considerando que na escola militarizada permanecem apenas os que se adaptam ao novo modelo (ou ame ou deixe) e os demais são transferidos, quando não se pratica o lema do pede pra sair, prática aplicada à alunos e professores;

2. Liberdade de aprender, ensinar, quando os estudantes são submetidos não só às normas rígidas e hierárquicas, mas também obrigados a seguir não preceitos humanos universais e sim do militarismo;

3. Gestão democrática do ensino público, quando substitui as relações horizontais pela hierarquia e obediência, próprias do meio militar;

4. A gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais, quando se institui o caixa escolar e se passa a cobrar taxas de matrículas, “contribuições voluntárias” mensais e uniformes (nada baratos!) para diferentes ocasiões e;

5. Consideração com a diversidade étnico-racial, quando impõem a uniformização de vestimentas, cortes de cabelo, comportamentos e imposição da cultura militar, provocando a homogeneização e negação dos sujeitos. 

A criação do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares- Pecim, pelo governo federal, que deveria questionar a legalidade do processo de militarização das escolas públicas em curso no país, fez com este ganhasse outra dimensão ao criar uma política que induz os sistemas a militarizarem suas escolas. O resultado dessa ação desastrosa do governo Bolsonaro foi o aumento do número de escolas militarizadas no ano de 2019 e previsão de expansão do modelo nos próximos anos. 

Quando candidato, Jair Bolsonaro prometeu que em dois anos implantaria um colégio militar em todas as capitais de Estado, nos moldes dos colégios do Exército, que é bem diferente de uma escola cívico-militar. O que Bolsonaro e Weintraub querem é desconstruir as bases primordiais da escola pública com essa proposta de militarização, que é apoiada por alguns governos estaduais e municipais – esses sob a falsa esperança de melhoria da qualidade da educação. Assim, fica o convite para continuarmos o debate sobre o tema e lutar pela defesa de uma escola que seja diversa e garanta o direito à educação de todos e todas, como inscrito na Constituição Federal de 1988.

Catarina de Almeida Santos

É professora adjunta da Faculdade de Educação da UnB, coordenadora do Comitê DF da Campanha Nacional pelo Direito a Educação e pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação da FE/Unicamp.

Da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (https://campanha.org.br/analises/catarina-de-almeida-santos/escolas-civis-gestao-militar/)